CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. Coleção primeiros passos. São Paulo: Brasiliense, 2008.
Por José Hailton Santos
À luz da teoria de Engels e Marx Chauí pretende mostrar nesse texto que a ideologia é um ideário histórico, social e político que oculta a realidade. De acordo com a autora, esse ocultamento é uma forma de assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política.[1] Nessa perspectiva, a ideologia é negativa quando não percebe a raiz histórica de suas ideias e imagina ser verdadeira para todos os tempos e todos os lugares.
A crítica que se faz é da ideologia construída de puros conceitos nascidos das observações científicas e de especulações metafísicas. Para Chauí, sem o laço das condições históricas, a ideologia tende a explicar a realidade na qual está inserida, ou seja, suas determinações. Nesse sentido, a ideologia é negativa, pois o idealista acredita que o conhecimento da realidade se reduz ao exame dos dados e das operações de nossa consciência, ou do intelecto como atividade produtora de ideias. Assim, a realidade estaria vinculada a um puro dado imediato e, como tal, nada diz sobre as condições históricas do homem.
Todavia, segundo a autora, o real não é um dado sensível nem tampouco intelectual, mas um processo, um movimento temporal de constituição dos seres e de suas significações, e esse processo depende fundamentalmente do modo como os homens se relacionam entre si e com a natureza.[2] Sendo assim, é das relações sociais que devemos partir para compreendermos os conteúdos e as causas dos pensamentos e das ações do homem.[3] De modo que a história se faz pelo modo de agir das pessoas, ou pela práxis humana. A única ciência que aqui interessa é a ciência da história humana.[4]
Chauí mostra que a concepção positivista de ideologia é ela própria, uma ideologia. Seguindo a linha de Marx, a autora nos diz que a produção das ideias e as condições sociais fazem parte da dialética histórico/materialista; é nessa relação, portanto, que as coisas devem ganhar significados. Nessa dialética, a produção e a superação das condições revelam que o real se realiza com a luta que se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais. Foi o que Marx chamou de luta de classes.
Todavia, a história de que fala Marx não é a história do espírito nos moldes de Hegel. A história é o modo real como os homens reais produzem suas condições reais de existência. Em vez de espírito, fala-se de matéria social, compreendida nas relações do trabalho. Deste modo, a alienação não é do espírito, mas dos homens reais em condições reais.[5] Imerso no sistema (capitalista), o homem torna-se coisa e a coisa vira social. Segundo a doutrina marxista, isto ocorre porque o sujeito vive uma ideologia.
No texto A ideologia Alemã, Marx diz que as ideias nascem da atividade material. No entanto, isso não significa dizer que os homens representem nessas ideias a realidade de suas condições materiais, mas ao contrário, representam o modo como essa realidade lhes aparece na existência imediata.[6] Nesse sentido, a forma inicial da consciência é a alienação, pois, entregue ao jogo do sistema, o homem não reconhece que essa realidade é também criação sua. É nesse momento, portanto, que nasce a ideologia. De acordo com Chauí, seguindo o viés de Marx, a ideia sempre se contradiz com a realidade, a exemplo da divisão das classes: aqueles que produzem a riqueza com seu trabalho (a massa de trabalhadores) não podem usufruir dessa riqueza, pois esse privilégio pertence à classe dos proprietários, ou classe dominante. Nesse sentido, sendo o Estado a representação legal dos interesses dos mais fortes é a própria divisão de classe.[7] O marxista afirma que esse antagonismo entre as classes sociais ocorrerá sempre onde houver propriedade privada.
Assim, a transformação histórica deve superar estes pressupostos. A massa de trabalhadores deve compreender que o poder foi produzido pela práxis social e pode ser destruído pela mesma práxis. A revolução social é condição material para tal transformação. A história, todavia, não pode ser o desenvolvimento das ideias na ação do Estado ou governante, mas o das forças produtivas ou luta das classes.
Se a história é história da luta de classes, então a sociedade civil não é um indivíduo coletivo como quer a ideologia burguesa. A ideologia é então um fenômeno objetivo produzido pela classe dominante, que faz com que os homens acreditem que são desiguais por natureza, por talento ou por desejo próprio.
Não está em jogo, portanto, a busca por uma consciência verdadeira em detrimento a uma consciência falsa, mas antes desvendar os processos reais e históricos que conduzem à exploração e à dominação, e aqueles que podem conduzir à liberdade.[8] Para Engels e Marx, a ideologia burguesa tende a explicar a história através da ideia de progresso, isto é, de um processo contínuo de evolução que vai rumo ao melhor e ao que é superior. Com efeito, a ideologia é um dos meios em que a classe dominante se utiliza para fazer valer sua dominação. Isto está expresso na célebre frase: “o trabalho dignifica o homem”. Aqui não se analisam as condições reais de trabalho. Estamos diante da ideia de trabalho e não, efetivamente, da exploração de homens pelos homens, diagnosticada por Marx na luta de classes. De modo que as ideias dominantes nada mais são que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias. Portanto, ideias de sua dominação”.[9]
Como toda ideologia, diz o marxista, a religião é uma atividade de consciência social que inverte a realidade. Disse Marx: “a religião é o ópio do povo”. Aqui o autor acusa a religião de fazer com que o povo aceite a miséria e o sofrimento sem revolta em nome de uma recompensa no reino dos céus, ou porque acredita que as dores são uma punição pelos pecados na vida terrena.
Na última parte de seu livro, Chauí faz uma analogia dos paradigmas da época de Marx com os de hoje. Diz a autora: “Enquanto na ideologia burguesa tradicional as ideias eram produzidas e emitidas por determinados agentes sociais – o pai, o patrão, o padre ou pastor, o professor, o sábio –, agora parece não haver agentes produzindo as ideias, porque elas parecem emanar diretamente do funcionamento da Organização e das chamadas leis do mercado”.[10] Se antes a ideologia se dava na relação, ou confronto entre as diferentes classes sociais, hoje ela está oculta no confronto entre os competentes (os especialistas que possuem conhecimento científico e tecnológico) e os incompetentes (os que executam as tarefas comandadas pelos especialistas). A ideologia burguesa, diz Chauí, deu lugar a uma nova modalidade, a qual a autora chamou de ideologia da competência, que aparece na fixação de um modelo de ser humano sempre jovem, saudável e feliz, produzido e difundido pela publicidade e pela moda. É nesse contexto que as organizações afirmam que só existe racionalidade nas leis do mercado e o discurso do especialista afirma que só há felicidade na competição e no sucesso de quem vence a competição. Com efeito, o vencedor ou poderoso é transformado em único sujeito da história. Daí o perigo de atribuir à história a legitimação do fracasso das massas.
Segundo Chauí, os agentes da história e do progresso são os “grandes e poderosos”, isto é os dominantes, cuja “grandeza” depende sempre da exploração e dominação dos “pequenos”.[11] Assim sendo, quem pode então desmantelar a ideologia? Diz Chauí: somente uma prática política nascida dos explorados, dominada e dirigida por eles próprios.
Marilena Chauí é professora de Filosofia Política e História da Filosofia Moderna da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
[1] CHAUI, p. 7.
[2] CHAUI, p. 22.
[3] CHAUI, p. 23.
[4] CHAUI, p. 39.
[5] CHAUI, p. 57.
[6] CHAUI, p. 64.
[7] CHAUI, p. 69.
[8] CHAUI, p. 78.
[9] CHAUI, p. 88.
[10] CHAUI, p. 109.
[11] CHAUI, p. 123.
Um comentário:
Marilena Chauí é uma excelente professora de Filosofia. Pode-se discordar das posições políticas dela, mas a análise que faz da ideologia é precisa e atual. Seu artigo mostrou que você compreendeu a análise.
Postar um comentário