Por Nelson José de Camargo*
Para o Wittgenstein do Tractatus, há um isomorfismo estrutural entre a linguagem e o mundo: a estrutura da linguagem corresponde à estrutura dada no mundo.
A linguagem é constituída de elementos essencialmente simples, os nomes, que designam elementos do próprio mundo. As sentenças da linguagem são formadas pela concatenação desses nomes, “sinais simples empregados na proposição”[1]. Essa concatenação deve respeitar certas regras, que determinam possibilidades ou impossibilidades de articulação. “A proposição não é uma mistura de palavras. (...) A proposição é articulada”[2] e é uma “figuração da realidade, (...) modelo da realidade tal como pensamos que seja”[3].
As possibilidades ou impossibilidades de articulação também estão presentes no próprio mundo. Assim, as uniões possíveis na linguagem correspondem a uniões possíveis no mundo. Os nomes, por sua vez, só têm sentido quando fazem parte de uma proposição. “Só a proposição tem sentido: é só no contexto da proposição que um nome tem significado”[4], diz Wittgenstein no Tractatus.
A gramática determina as possibilidades ou impossibilidades combinatórias entre nomes, que são o reflexo das possibilidades dadas no próprio mundo, espelham possibilidades ou impossibilidades de que o mundo é composto. “A gramática é um espelho da realidade”[5].
Assim, “a linguagem constitui-se de proposições. (...) Uma proposição é um retrato da realidade”[6]. Ou, como lemos no Tractatus, “a totalidade das proposições é a linguagem”[7].
“Toda proposição é uma função de verdade de proposições elementares”[8], isto é, proposições que não pressupõem nenhuma outra proposição em seu processo construtivo e que são independentes entre si.
As proposições complexas, ou “todas as proposições que não sejam atômicas [elementares] podem ser derivadas de proposições que o sejam”[9], como diz Russell na sua Introdução ao Tractatus.
Na elaboração de sentenças, só é possível combinar as palavras de acordo com certas regras. Na sentença “este carro é azul”, por exemplo, é perfeitamente possível substituir a palavra “azul” por “amarelo”, e a sentença continuaria fazendo sentido. Mas essas substituições “só são possíveis quando as palavras são do mesmo tipo[10]”. Nesse caso, “azul” e “amarelo” são palavras do mesmo tipo, e a sentença estaria logicamente correta, ainda que não correspondesse à realidade do mundo. Meu carro pode não ser azul nem amarelo, ou talvez eu não tenha um carro. “Uma descrição é verificada ou falseada pela comparação com a realidade, à qual pode corresponder ou não, e ser verdadeira ou falsa”[11]. Uma proposição é verdadeira se corresponde à realidade, e falsa, se não corresponde.
Assim, uma proposição que tem sentido é bipolar: pode ver verdadeira ou falsa, e “todas as condições necessárias para a comparação entre a proposição e a realidade pertencem, fazem parte das regras que governam a aplicação da linguagem à realidade”[12].
Já uma sentença do tipo “a nota dó é azul” não tem sentido, ainda que associe uma qualidade (cor) a um nome, de acordo com a gramática. Logo, não é uma proposição, mas um contrassenso.
Portanto, a construção de sentenças depende da utilização de palavras que possam ser articuladas entre si, isto é, que permitam a construção de sentenças que tenham sentido, verdadeiras ou falsas. “Se as proposições representam um estado de coisas (que pode ou não corresponder a determinada realidade) elas são verdadeiras ou falsas”[13].
Feitas essas considerações, surge a principal tese do Tractatus: seria possível construir todas as sentenças da linguagem com a utilização de operadores de verdade.
Frege e Russell já haviam fracassado na tentativa de reduzir a linguagem matemática a caracteres puramente lógicos. E a impossibilidade de construir sentenças matemáticas com operadores de verdade levou Wittgenstein a questionar sua própria obra. Assim, o período intermediário de Wittgenstein assinala a o início da ruptura com a filosofia do Tractatus. Ainda não era uma ruptura total, mas era o início de seu questionamento.
As definições de cores e grandezas, por exemplo, dependem do uso de determinados sistemas métricos, ou sistemas de medidas, e tais sistemas devem fazer parte da linguagem. Há uma relação entre sistema métrico e grandeza, e não mais entre sujeito e objeto. “Uma proposição tem o mesmo tipo de relação com a realidade do que um sistema de medida tem com um objeto”[14]. O uso da linguagem implica uma métrica implícita, e a elaboração de proposições elementares resulta da síntese de medidas. Para que uma proposição seja verdadeira, deve estar associada a um determinado método de verificação.
Os sistemas métricos, por sua vez, dependem de escolhas arbitrárias. “A relação entre sentido de uma sentença e sua satisfação é externa, não é lógica. “Não há conceitos lógicos, como por exemplo ‘coisa’, ‘complexo’ ou ‘número’. Tais termos são expressões para formas lógicas, não conceitos”[15].
Não apenas é impossível expressar sentenças matemáticas com operadores de verdade. Os números também não podem ser reduzidos a estruturas lógicas. Já no Tractatus, Wittgenstein afirmava, segundo Russell, que “as proposições lógicas, as equações matemáticas e os princípios naturais carecem de sentido, não representam nada”[16]. O próprio papel da filosofia era questionado. “As proposições filosóficas (...) são contrassensos e nada mais”[17]. Ou, ainda nas palavras de Russell, “toda proposição filosófica é má gramática, e o que de melhor podemos esperar de uma discussão filosófica é levar as pessoas a perceberem que a discussão filosófica é um equívoco”[18].
No período intermediário, Wittgenstein ainda acredita em uma correspondência entre a estrutura da linguagem e a estrutura no mundo, tal como ocorria no Tractatus, ainda que tenha abandonado a tese da possibilidade de construir todas as proposições da linguagem com operadores de verdade. “A análise lógica das proposições com sentido (...) pode revelar a estrutura essencial e os fundamentos absolutos do mundo. Eles mostram-se na forma e no sentido das proposições elementares”[19]. A linguagem, porém, “está conectada à realidade ao descrevê-la, mas essa conexão não se dá na linguagem, não pode ser explicada por ela”[20].
Wittgenstein acabará rejeitando a ideia de uma estrutura dada no mundo que determina a estrutura da linguagem, e também a ideia de construir todas as sentenças da linguagem com operadores de verdade. Tais ideias traziam, em si mesmas, em razão de suas próprias contradições, os elementos que levariam a seu abandono. O período intermediário marca inequivocamente a tentativa de “salvar”, ao menos parcialmente, a filosofia do Tractatus, tentativa que acabará se revelando fracassada.
*Nelson José de Camargo é Bacharel em filosofia e jornalista
[1] Wittgenstein, L. Tractatus Logico-Philosophicus, p. 151.
[2] Ibid., p. 149.
[3] Ibid., p. 165.
[4] Ibid., p. 153.
[5] Wittgenstein’s lectures, p. 9.
[6], Ibid., p. 1.
[7] Op. cit., p. 165.
[8] SANTOS, L. H. L. A essência da proposição e a essência do mundo, p. 75
[9] RUSSELL, B. Introdução ao Tractatus Logico-Philosophicus, p. 121
[10] Wittgenstein’s Lectures, p. 2.
[11] Op. cit., p. 3
[12] Ibid., p. 7.
[13] Ibid., p. 10.
[14] Ibid., p. 6.
[15] Ibid., 10.
[16] Op. cit., p. 100.
[17] Ibid., p. 101.
[18] Op. cit.., p. 116.
[19] Ibid., p. 102.
[20] Op. cit., p. 12.
[1] Wittgenstein, L. Tractatus Logico-Philosophicus, p. 151.
[2] Ibid., p. 149.
[3] Ibid., p. 165.
[4] Ibid., p. 153.
[5] Wittgenstein’s lectures, p. 9.
[6], Ibid., p. 1.
[7] Op. cit., p. 165.
[8] SANTOS, L. H. L. A essência da proposição e a essência do mundo, p. 75
[9] RUSSELL, B. Introdução ao Tractatus Logico-Philosophicus, p. 121
[10] Wittgenstein’s Lectures, p. 2.
[11] Op. cit., p. 3
[12] Ibid., p. 7.
[13] Ibid., p. 10.
[14] Ibid., p. 6.
[15] Ibid., 10.
[16] Op. cit., p. 100.
[17] Ibid., p. 101.
[18] Op. cit.., p. 116.
[19] Ibid., p. 102.
[20] Op. cit., p. 12.
BIBLIOGRAFIA
RUSSELL, B. Introdução. In: WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 2008.
SANTOS, L. H. L. A essência da proposição e a essência do mundo. In: Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 2008.
WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 2008.
Wittgenstein’s Lectures. From the Notes of John King e Desmond Lee. Chicago: University of Chicago Press, 1982.
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