sábado, janeiro 28, 2012

Gramática e ontologia na filosofia de Wittgenstein durante o período intermediário

Por Nelson José de Camargo*

A filosofia de Wittgenstein geralmente é dividida entre o Tractatus-Logico-Philosophicus e as obras da maturidade, como as Investigações filosóficas, na qual rompe com as ideias defendidas na primeira obra. Tal ruptura, porém, não foi repentina, mas resultou de um processo, que teve início durante os cursos em Cambridge entre 1930 e 1932. Esse é o assim chamado período intermediário.

Para o Wittgenstein do Tractatus, há um isomorfismo estrutural entre a linguagem e o mundo: a estrutura da linguagem corresponde à estrutura dada no mundo.

A linguagem é constituída de elementos essencialmente simples, os nomes, que designam elementos do próprio mundo. As sentenças da linguagem são formadas pela concatenação desses nomes, “sinais simples empregados na proposição”[1]. Essa concatenação deve respeitar certas regras, que determinam possibilidades ou impossibilidades de articulação. “A proposição não é uma mistura de palavras. (...) A proposição é articulada”[2] e é uma “figuração da realidade, (...) modelo da realidade tal como pensamos que seja”[3].

As possibilidades ou impossibilidades de articulação também estão presentes no próprio mundo. Assim, as uniões possíveis na linguagem correspondem a uniões possíveis no mundo. Os nomes, por sua vez, só têm sentido quando fazem parte de uma proposição. “Só a proposição tem sentido: é só no contexto da proposição que um nome tem significado”[4], diz Wittgenstein no Tractatus.

A gramática determina as possibilidades ou impossibilidades combinatórias entre nomes, que são o reflexo das possibilidades dadas no próprio mundo, espelham possibilidades ou impossibilidades de que o mundo é composto. “A gramática é um espelho da realidade”[5].

Assim, “a linguagem constitui-se de proposições. (...) Uma proposição é um retrato da realidade”[6]. Ou, como lemos no Tractatus, “a totalidade das proposições é a linguagem”[7].

“Toda proposição é uma função de verdade de proposições elementares”[8], isto é, proposições que não pressupõem nenhuma outra proposição em seu processo construtivo e que são independentes entre si.

As proposições complexas, ou “todas as proposições que não sejam atômicas [elementares] podem ser derivadas de proposições que o sejam”[9], como diz Russell na sua Introdução ao Tractatus.

Na elaboração de sentenças, só é possível combinar as palavras de acordo com certas regras. Na sentença “este carro é azul”, por exemplo, é perfeitamente possível substituir a palavra “azul” por “amarelo”, e a sentença continuaria fazendo sentido. Mas essas substituições “só são possíveis quando as palavras são do mesmo tipo[10]”. Nesse caso, “azul” e “amarelo” são palavras do mesmo tipo, e a sentença estaria logicamente correta, ainda que não correspondesse à realidade do mundo. Meu carro pode não ser azul nem amarelo, ou talvez eu não tenha um carro. “Uma descrição é verificada ou falseada pela comparação com a realidade, à qual pode corresponder ou não, e ser verdadeira ou falsa”[11]. Uma proposição é verdadeira se corresponde à realidade, e falsa, se não corresponde.

Assim, uma proposição que tem sentido é bipolar: pode ver verdadeira ou falsa, e “todas as condições necessárias para a comparação entre a proposição e a realidade pertencem, fazem parte das regras que governam a aplicação da linguagem à realidade”[12].

Já uma sentença do tipo “a nota dó é azul” não tem sentido, ainda que associe uma qualidade (cor) a um nome, de acordo com a gramática. Logo, não é uma proposição, mas um contrassenso.

Portanto, a construção de sentenças depende da utilização de palavras que possam ser articuladas entre si, isto é, que permitam a construção de sentenças que tenham sentido, verdadeiras ou falsas. “Se as proposições representam um estado de coisas (que pode ou não corresponder a determinada realidade) elas são verdadeiras ou falsas”[13].

Feitas essas considerações, surge a principal tese do Tractatus: seria possível construir todas as sentenças da linguagem com a utilização de operadores de verdade.

Frege e Russell já haviam fracassado na tentativa de reduzir a linguagem matemática a caracteres puramente lógicos. E a impossibilidade de construir sentenças matemáticas com operadores de verdade levou Wittgenstein a questionar sua própria obra. Assim, o período intermediário de Wittgenstein assinala a o início da ruptura com a filosofia do Tractatus. Ainda não era uma ruptura total, mas era o início de seu questionamento.

As definições de cores e grandezas, por exemplo, dependem do uso de determinados sistemas métricos, ou sistemas de medidas, e tais sistemas devem fazer parte da linguagem. Há uma relação entre sistema métrico e grandeza, e não mais entre sujeito e objeto. “Uma proposição tem o mesmo tipo de relação com a realidade do que um sistema de medida tem com um objeto”[14]. O uso da linguagem implica uma métrica implícita, e a elaboração de proposições elementares resulta da síntese de medidas. Para que uma proposição seja verdadeira, deve estar associada a um determinado método de verificação.

Os sistemas métricos, por sua vez, dependem de escolhas arbitrárias. “A relação entre sentido de uma sentença e sua satisfação é externa, não é lógica. “Não há conceitos lógicos, como por exemplo ‘coisa’, ‘complexo’ ou ‘número’. Tais termos são expressões para formas lógicas, não conceitos”[15].

Não apenas é impossível expressar sentenças matemáticas com operadores de verdade. Os números também não podem ser reduzidos a estruturas lógicas. Já no Tractatus, Wittgenstein afirmava, segundo Russell, que “as proposições lógicas, as equações matemáticas e os princípios naturais carecem de sentido, não representam nada”[16]. O próprio papel da filosofia era questionado. “As proposições filosóficas (...) são contrassensos e nada mais”[17]. Ou, ainda nas palavras de Russell, “toda proposição filosófica é má gramática, e o que de melhor podemos esperar de uma discussão filosófica é levar as pessoas a perceberem que a discussão filosófica é um equívoco”[18].

No período intermediário, Wittgenstein ainda acredita em uma correspondência entre a estrutura da linguagem e a estrutura no mundo, tal como ocorria no Tractatus, ainda que tenha abandonado a tese da possibilidade de construir todas as proposições da linguagem com operadores de verdade. “A análise lógica das proposições com sentido (...) pode revelar a estrutura essencial e os fundamentos absolutos do mundo. Eles mostram-se na forma e no sentido das proposições elementares”[19]. A linguagem, porém, “está conectada à realidade ao descrevê-la, mas essa conexão não se dá na linguagem, não pode ser explicada por ela”[20].

Wittgenstein acabará rejeitando a ideia de uma estrutura dada no mundo que determina a estrutura da linguagem, e também a ideia de construir todas as sentenças da linguagem com operadores de verdade. Tais ideias traziam, em si mesmas, em razão de suas próprias contradições, os elementos que levariam a seu abandono. O período intermediário marca inequivocamente a tentativa de “salvar”, ao menos parcialmente, a filosofia do Tractatus, tentativa que acabará se revelando fracassada. 

*Nelson José de Camargo é Bacharel em filosofia e jornalista

[1] Wittgenstein, L. Tractatus Logico-Philosophicus, p. 151.
[2] Ibid., p. 149.
[3] Ibid., p. 165.
[4] Ibid., p. 153.
[5] Wittgenstein’s lectures, p. 9.
[6], Ibid., p. 1.
[7] Op. cit., p. 165.
[8] SANTOS, L. H. L. A essência da proposição e a essência do mundo, p. 75
[9] RUSSELL, B. Introdução ao Tractatus Logico-Philosophicus, p. 121
[10] Wittgenstein’s Lectures, p. 2.
[11] Op. cit., p. 3
[12] Ibid., p. 7.
[13] Ibid., p. 10.
[14] Ibid., p. 6.
[15] Ibid., 10.
[16] Op. cit., p. 100.
[17] Ibid., p. 101.
[18] Op. cit.., p. 116.
[19] Ibid., p. 102.
[20] Op. cit., p. 12.

BIBLIOGRAFIA

RUSSELL, B. Introdução. In: WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 2008.

SANTOS, L. H. L. A essência da proposição e a essência do mundo. In: Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 2008.

WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 2008.

Wittgenstein’s Lectures. From the Notes of John King e Desmond Lee. Chicago: University of Chicago Press, 1982.

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