domingo, janeiro 22, 2012

O existencialismo é um humanismo

Por Hailton Santos

Nesse texto[1] Sartre responde às críticas dirigidas ao existencialismo advindas, principalmente, dos marxistas e dos católicos.

A crítica marxista diz que o existencialismo leva as pessoas a uma filosofia contemplativa devido à inacessibilidade de suas soluções. Com efeito, o existencialismo não passa de uma filosofia burguesa.

Já os católicos acusam o existencialismo de negligenciar certas coisas belas e alegres da natureza humana, como o sorriso da criança, por exemplo. A crítica cristã diz que se suprirmos os mandamentos de Deus e os valores inscritos na eternidade, não resta mais que a estrita gratuidade, e cada um poderá fazer o que quiser.

Segundo Sartre, a essência de toda crítica, é que o existencialismo acentua o lado ruim da vida humana. No entanto, diz Sartre: “as mesmas pessoas que adoram canções realistas são aquelas que reclamam que o existencialismo é muito sombrio, a tal ponto de eu me perguntar se eles não estão se queixando mais do otimismo do existencialismo do que, na verdade, de seu pessimismo”.[2]

Assim, a doutrina existencialista parte, inicialmente, da subjetividade, ou seja, da noção de que a existência precede a essência. De acordo com o autor, somente nos objetos da técnica a essência precede a existência. A exemplo do corta-papel, cujo conjunto de procedimentos que permite produzi-lo e defini-lo precede sua existência. Nesse sentido, o conceito “homem” segue os mesmos preceitos, ou seja, um conjunto de regras (essência) atribuídas ao homem que precede ao “animal homem”. Para o autor, esse conjunto de regras está em desacordo com a verdade histórica com que nos deparamos.[3]

Todavia, para o existencialista o homem não é definível porque ele não é essencialmente nada. Ele apenas será alguma coisa posteriormente, e será aquilo que se tornar. De modo que não há natureza humana. E este é, portanto, o primeiro traço do existencialismo.

Mas se realmente o homem precede a essência como quer o existencialista, o homem é responsável pelo que ele é. É responsável por sua existência e, por efeito, pela existência de seus pares, pois “não existe um de nossos atos qualquer que criando o homem que queremos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem conforme julgamos que ele deva ser”. [4] Disso se segue que, em nossas escolhas buscamos o que é bom e melhor para nós. Se a existência precede a essência e nós queremos existir, aquilo que é bom e melhor para o indivíduo (como uma escolha) também é bom e melhor para todos e para uma época inteira. Pois, como poderia eu escolher aquilo que seria pior para mim? Ao escolher o que é melhor para mim, compreendo também que seja o melhor para todos. O homem que se engaja percebe que ele não é apenas o que escolhe ser, mas também um legislador que escolhe ao mesmo tempo sua humanidade.

Segundo Sartre, aquele que foge à sua responsabilidade está agindo de má-fé, e nesse caso, não está bem com sua consciência. Mesmo mascarada, a angústia se manifesta. Cabe a cada um se perguntar: sou eu mesmo que tem o direito de agir de forma tal que a humanidade se oriente por meus atos? De acordo com Sartre, aquele que não propor a si mesmo essa questão, está mascarando a angústia.[5] A escolha existencial, portanto, não é uma escolha vaga. Toda escolha implica relação com algo, com alguma coisa. Mesmo na angústia, essa escolha se explica por uma responsabilidade direta com o outro.

Se a existência precede a essência, nunca se poderá recorrer a uma natureza dada e definida para explicar alguma coisa. De modo que não existe determinismo no existencialismo. Para o existencialista “o homem é liberdade”. Daí a famosa frase de Sartre “o homem está condenado a ser livre”.[6] Condenado porque não criou a si mesmo. Contudo, ao ser lançado no mundo, é responsável por tudo que faz e ainda assim é livre. É livre, destarte, porque é ele quem decifra como melhor lhe parecer, e como já foi dito, não há causa a priori que o determine. Nesse sentido, “não temos outra escolha a não ser confiar em nossos instintos”. [7]

Sendo assim, como posso justificar meu ato se a ação é instintiva? Não estamos diante de um círculo vicioso? O existencialista diria que o sentimento se constrói pelas ações que realizamos. No entanto, não podemos consultá-las como uma espécie de guia. O estado autêntico que impulsionará a ação não pode ser derivado da moral, pois, se é autêntico, não carece de conceitos. Na realidade, as coisas serão exatamente como o homem decidir que elas sejam. Todo agir é antecipado por uma escolha. Ao pedir conselho a um padre, por exemplo, você já escolheu esse padre e, no fundo já sabia mais ou menos o que ele iria lhe aconselhar. E ainda, o ato da escolha implica um engajamento pessoal que também é uma escolha. Ou seja, o homem se constrói em meio às suas escolhas.

Considerando que o homem é livre e que não existe nenhuma natureza humana sobre a qual é possível fundamentar-se, o existencialismo propõe um engajamento tal que as ações particulares não podem ser justificadas pelas ações dos outros. É um não, portanto, ao quietismo. Nesse sentido, o homem não existe senão na medida em que se realiza e, portanto, não é outra coisa senão um conjunto de seus atos, nada mais além de sua vida.[8] De modo que, para o existencialista, não existe outro amor senão aquele que é construído com o tempo; não há genialidade senão aquela que se expressa em obras de arte. Nas palavras de Sartre: “você não é outra coisa senão sua vida”. [9]

Segundo Sartre, o existencialismo não pode ser considerado uma filosofia do quietismo, uma vez que define o homem pela ação; tampouco pode ser considerado uma descrição pessimista do homem, pois coloca o destino do homem nele mesmo. Nem mesmo uma doutrina que desencoraja o homem de agir, já que afirma que não existe esperança para além da ação do homem.

Contrariamente às filosofias de Descartes e Kant, o existencialista apreende a si mesmo diante do outro e, neste caso, o outro é tão certo para nós quanto o somos nós mesmos. Isto significa que o outro é indispensável para o existencialista, tanto quanto o é para o autoconhecimento. O mundo existencialista é, portanto, um mundo marcado pela intersubjetividade. Um mundo em que o homem decide o que ele é e o que os outros são.

O que caracteriza o existencialismo, portanto, são as escolhas. O homem não está feito de antemão, ele se faz perante suas escolhas, só não pode deixar de fazer uma escolha. Segundo Sartre, todo homem que se refugia por trás da desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um determinismo é um homem de má-fé. Por dissimular a total liberdade do engajamento, a má-fé é uma mentira. É quando se diz, por exemplo, “alguns valores são anteriores a mim”. O existencialista sabe que não existe nenhuma regra (essência) que preceda sua existência, logo não pode utilizar esse subterfúgio. Todavia, o homem é livre para agir, inclusive de má-fé. No entanto, de acordo com Sartre, espera-se do existencialista coerência de engajamento, ou atitude de boa-fé. Isto significa que os atos dos homens de boa-fé têm como última significação a busca da liberdade enquanto tal.[10] Obviamente a liberdade de que fala Sartre não depende de outrem, mas desde que exista o engajamento, postula-se também a liberdade do outro.

Se somos nós que determinamos os valores, significa que a vida não tem sentido a priori. O valor da vida não é outra coisa senão o sentido que escolhemos.[11] Não há outro universo senão o universo humano marcado pela subjetividade, na qual o homem não se encontra encerrado nele mesmo, mas sempre presente num universo humano. A este universo humano Sartre nomeou humanismo existencialista”.[12]


BIBLIOGRAFIA
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Apresentação e notas de Arlette Elkaïm-Sartre com tradução de João Batista Kreuch. Petrópolis: Vozes, 2010.

[1] Estenografado de uma conferência proferida por Sartre em Paris no mês de outubro de 1945.
[2] SARTRE, p. 22.
[3] SARTRE, p. 25.
[4] SARTRE, p. 27.
[5] SARTRE, p. 30.
[6] SARTRE, p. 33.
[7] SARTRE, p. 36.
[8] SARTRE, p. 42.
[9] SARTRE, p. 43.
[10] SARTRE, p. 55.
[11] SARTRE, p. 59.
[12] SARTRE, p. 61.

Um comentário:

Nelson disse...

O existencialismo foi uma tentativa de fazer uma filosofia do Ser (Sein), e não do Ente (Seiend), ou ainda do Ser do Ente (Sein des Seiendes), como disse Heidegger.