sábado, fevereiro 04, 2012

Condição humana e liberdade estética

À LUZ DA ESTÉTICA SCHILLERIANA

Por Hailton Santos

No século XVIII, considerado o século das luzes, surgem os conceitos de “progresso” e “desenvolvimento”, propiciando o início de um novo tempo. Com efeito, é dada a largada para o desenvolvimento “a qualquer custo”.[1] Neste contexto é relevante assinalar que a temática da Bildung (formação cultural) é tema recorrente nas obras de cunho estético/filosófico do período, caracterizando, deste modo, um foco de resistência ao progresso desenfreado. A este complexo temático denominou-se Aufklärung (Iluminismo ou Esclarecimento).

Com o advento da industrialização as pessoas passaram a competir mais e mais entre si. “A crença no progresso expôs o homem a todas as regressões. Seu individualismo estimulou o advento do sujeito egoísta, preocupado unicamente com o ganho e a acumulação”.[2] Nos dias de hoje vale a satisfação pessoal em detrimento ao coletivo. Com efeito, esse sentimento que já é parte da cultura faz do “homem lobo do homem”.[3] Nessa estética do eu, o homem perde a noção de “ser social”, de “ser humano” e, sem referências conceituais, o homem da modernidade é refém de si mesmo, sobretudo porque está a serviço de uma engrenagem que ele mesmo faz girar.

Faz-se necessário, portanto, uma pedagogia da razão que assegure o equilíbrio entre intelecto refinado (razão sem sentimento) e homem bruto (sentimento sem razão). O primeiro refém de seu ego, o segundo de seus impulsos primários. Isto implica, todavia, uma reformulação da civilização. A estética como categoria existencial e princípio de realidade.

Eis aqui o problema de nosso ensaio, se o conhecimento humano é construído sobre juízos sintéticos a posteriori, como quer o homem contemporâneo, seria possível estabelecer princípios universais e necessários – a priori – para juízos estéticos? É possível juízo de gosto universal?

À luz das teorias de Kant, no texto A educação estética do homem (1783), Schiller apresenta a dimensão estética como libertação da sensualidade frente à dominação repressiva da razão. O sentimento de belo como fundamento à vida. A estética como princípios válidos para os dois polos da existência humana, a saber, sensibilidade e moralidade, ou sentimento e razão. É esse, portanto, o sentido prático da estética, e é por meio dessa temática que seguirá toda fundamentação deste ensaio.

É porque a beleza é uma condição necessária da humanidade como disse Kant que a função estética pode desempenhar um papel decisivo na reformulação da civilização. É a partir das ideias de Kant que Schiller constrói sua reflexão estética. No entanto, apesar de ter sido influenciado pela estética kantiana, Schiller tem sua originalidade. Como nos diz Hegel: “O grande mérito de Schiller está em ter ultrapassado a subjetividade e a abstração do pensamento kantiano e tentado conceber pelo pensamento e realizar na arte a unidade e a conciliação como única expressão da verdade”.[4] É essa conciliação e/ou verdade estética que aqui nos interessa.

Foi Schiller quem, no contexto da Bildung, denunciou antes mesmo de Marx o fenômeno da alienação. Nesse período a sociedade industrial começa a ganhar forma sob o domínio do princípio de desempenho. A perspectiva de mais dinheiro no bolso, em decorrência do progresso fez (e ainda faz) do homem mera peça da engrenagem: “escutando sempre e apenas o monótono rodopiar da roda que ele faz girar, jamais desenvolve a harmonia de seu próprio ser e, em vez de dar forma à humanidade que existe em sua natureza converte-se em simples marca de sua ocupação, de sua ciência”.[5]

É desta forma que o autor das Cartas diagnostica a doença da civilização moderna, a saber, das exigências em demasia da cultura para com a natureza do indivíduo. No contexto de Schiller, é quando a cultura faz cindir a unidade orgânica natural do homem; quando a relação entre razão e sentimento é tida como dicotômica e não congruente. Numa relação em que aquele que pensa (razão instrumental) sempre terá o controle da situação. Ao passo que aquele que apenas sente (sentimento sem razão) obedece cegamente aos ditames do primeiro e, dessa forma, apenas segue o curso da história. De modo que é preciso superar essa dicotomia. Isto implica, todavia, uma luta constante contra a razão objetiva. Schiller acreditava que a chave para a solução destes problemas teria de ser forjada precisamente no “mundo estético”.[6] De modo que o caminho é a educação estética do homem.

Como postulado a uma forma de Estado adequado à estrutura humana, Schiller separa a realidade humana (física) da realidade como uma construção da razão – ou formas do pensamento. A primeira entregue ao mecanismo da natureza (necessária) e a segunda oscila como possibilidade de transformar a obra da necessidade em obra de sua livre escolha e elevar a determinação física à determinação moral. [7]

O argumento de Schiller é que numa civilização autenticamente humana, o homem jogará em vez de labutar com esforço. Sob os efeitos da beleza (fruição estética) o homem vive a se exibir em vez de permanecer vergado à necessidade. É somente nesse sentido que se pode falar em liberdade. A condição estética exige apenas o “bem viver” e não tem interesse algum em outra realidade. O que está em jogo é a libertação do homem das condições inumanas. A estética como busca de correção dos limites do gosto, legitimada pelas regras da razão.

Segundo Schiller, a cultura grega clássica portava esse ideário. Nos jogos olímpicos, por exemplo, os gregos apreciavam as disputas entre os maiores talentos sem sangue ou força, ao passo que em outras culturas esse sentimento não estava claro. Os romanos, por exemplo, se divertiam com a agonia dos gladiadores; se deleitavam ao ver sangrar o pobre derrotado. Isto mostra por que os ideais de Vênus, Juno ou Apolo são atribuídos aos gregos e não aos romanos. É por isso, ainda conforme Schiller, que só no estado estético o homem atinge sua plenitude: “o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga”.[8]

Por isso mesmo, a razão aqui não é um puro ato do inteligível, mas um conciliar entre o pensar e agir. Numa relação em que a ação (agir humano) está sob o julgo da “razão mista”. É quando razão e sentimento são tidos como formas complementares e não dicotômicas. Schiller está convencido de que o problema da humanidade é um problema de cultura. O diagnóstico que se faz é que a cultura, longe de dar-nos a liberdade, ao contrário, cria novas necessidades. A contradição entre natureza e cultura se aprofunda à medida que as exigências desta última se sobrepõem à capacidade da primeira em satisfazê-la. Ou seja, a cultura exige mais do que nossa natureza é capaz de realizar.

Esta problemática da cultura foi amplamente difundida e discutida por Freud na obra O mal estar da civilização (1930). De acordo com Freud, uma parcela de nós é impulso primário, outra é resultado de uma cisão no desenvolvimento da espécie via experiência. Segue-se disso que, inevitavelmente, no contato com o outro, ou no mundo da experiência, o eu original (homem bruto) quer evitar o desprazer e é contrariado pelas exigências da cultura. Como consequência, “o homem se torna neurótico porque não pode suportar a medida de privação que a sociedade lhe impõe em prol de seus ideais culturais”.[9] De modo que, no contexto de Schiller, essa condição humana não será atenuada ou dissolvida enquanto o homem permanecer entregue à sua brutalidade física (sentimento sem razão) ou na decadência requintada do bárbaro culto (razão sem sentimento). É tarefa do estado lúdico, portanto, reintegrar essas duas instâncias ao caráter humano.

Seguindo o viés de Schiller, Hannah Arendt, na obra A condição humana (1958), sugere o mesmo. De acordo com a filósofa, nem a razão dogmática, nem a vontade rudimentar. O artifício humano deve coincidir com essa combinação. Nas palavras da autora, “não precisamos escolher aqui entre Platão e Protágoras, ou decidir se o homem ou um deus é a medida de todas as coisas; o que é certo é que a medida não pode ser nem as necessidades coativas da vida biológica e do trabalho, nem o instrumentalismo utilitário da fabricação e do uso”.[10] Se é o homem quem dá forma às coisas e, nesse caso, realidade, não deve se comprazer com as realidades das coisas, mas com o que é obra sua.

Se a beleza é beleza no fenômeno ela é obra sua e como tal libera o homem de dois erros e desvios: da brutalidade física do selvagem e da decadência requintada do bárbaro culto. É no pensar e no agir, portanto, que se expressa o ideal da maior tarefa do homem (a educação estética). A beleza nesses moldes é um potencial da razão, porque é um devir de perfeição entre a realidade e forma. O caráter estético não se aprisiona a individualidade por que se torna extensivo acordo de opiniões para o aprimoramento da raça humana. Segundo Schiller, “a práxis transformadora”. O caminho a essa transformação é o psico-histórico, e a arte será o meio prático. No contexto de Schiller, a humanidade é uma obra de arte que deve ser modelada conforme o tempo do artista. Esse artista, sendo homem, também é obra. Sendo artista e obra, ao homem cabe a eterna tarefa de busca de perfeição de sua espécie, mesmo que essa perfeição nunca se realize em ato.

Todavia, é preciso preparar o homem. Não haverá universalização da beleza enquanto o homem for inculto. Não haverá boa constituição de Estado sem a educação estética do homem, somente o gosto permite harmonia na sociedade, pois cria harmonia no indivíduo. Todas as outras formas de concepção fragmentam o homem, pois fundamentam-se na parte sensível de seu ser ou na espiritual; somente a concepção estética faz dele um todo ao exigir a concordância de suas duas naturezas.[11]

No estado dinâmico (natural) o homem é homem enquanto força; no estado ético ele enfrenta o homem pela majestade da lei, já no estado estético o homem é objeto do livre jogo. Há um comprazer no fenômeno. De acordo com Schiller, o gosto refinado pela educação estética conduz o conhecimento para fora dos mistérios da ciência e o traz para o céu aberto do senso comum.[12] É somente pelo sentimento do belo, expresso pela generosidade dos costumes cavalheirescos, que se faz cessar a “injustiça natural”.

E se lhe for perguntado, existirá tal estado? Não hesite em afirmar: Como anseio, ele existe em todas as almas nobres.

CONCLUSÃO
Cada um de nós tende mais ao sensível ou ao racional ─ isto é fato. O problema é quando essa tendência é majoritária e sobrepõe-se aos interesses da outra natureza. O que se busca é uma “razão mista” que, supõe o autor, experimentou o diverso e, diante das dificuldades contingenciais, saiba atribuir a cada qual o seu devido valor.

Se pensarmos a vida como um jogo de interesses comunitários, ela deve ser constituída de beleza e de bondade, mas se nos deixarmos levar apenas por forças naturais, ela é cega e sem sentido. De modo que não nos resta outra saída senão darmos, nós mesmos, sentido às nossas vidas.

A sociedade da época de Schiller encontrava-se fragmentada pelo dilaceramento na cisão do homem sensível e do homem racional, conforme diagnóstico do pensador. A sociedade de hoje, além de fragmentada, navega à deriva, em meio à mercantilização de toda ordem. No desnorteio da contemporaneidade o homem se faz cético, a passos de um niilismo absoluto. Como viver, então, nesse hiper-mundo desorientado?

No que tange às pretensões schillerianas, seu sistema encontra desafios já na própria base de sustentação, ou seja, na arte. É que uma expressiva parcela da estética encontra-se dissolvida sob as regras do mundo mercantilista, a exemplo da indústria cultural. Na dinâmica do novo capitalismo, a cada dia novos segmentos de arte se integram ao chamado mundo da estética da mercadoria.

Num tempo marcado por concorrência e competição; do homem desiludido e desorientado, a educação estética poderá sim dar um norte à humanidade. Se Schiller estava correto em educar o gosto, é tarefa da arte (em toda a sua dimensão) resgatar aquilo que lhe é peculiar, a saber, sua autonomia diante de uma realidade dada.

Os nietzschianos acusam a razão de ser o agente principal da repressão e só veem relação de poder nas ações humanas. No entanto, é somente a razão que trabalha o conceito, e nesse sentido, pode dissolver o existente. De modo que os “irracionalistas” são conformistas e, neste caso, “comunidade de rebanho”, exatamente o contrário do que dissera Nietzsche.

De modo que o problema não está na natureza racional do homem, mas na condução que se dá a ela. Se isto é verdade, Schiller está correto, a humanidade carece de um novo racionalismo, fundado numa razão aos moldes da “razão mista”. Capaz de fazer críticas, mas também de autocriticar-se. Trata-se, assim, de uma “razão sábia” na qual razão e sensibilidade se entrelaçam num entendimento mútuo com vistas não apenas ao viver, mas como diriam os gregos, ao “viver bem”.

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[1] Aqui a expressão “a qualquer custo” é usada no sentido de não importar ao construtor a maneira de como será construída a ponte que levará ao “progresso”. Não importam os prejuízos (humanos) pelas desapropriações; desflorestamentos e coisas desse tipo. Ao construtor importa apenas a realização da obra com vistas ao lucro. Esse sentimento se faz presente na obra Fausto de Goethe, mais precisamente na terceira metamorfose O fomentador quando, sob pretexto de trazer alegrias às futuras gerações Fausto promove um audacioso plano desenvolvimentista, culminando então, numa série de atrocidades, a exemplo da morte do casal de velhinhos (Baucis e Filemon) que, coincidentemente, moravam num terreno que Fausto escolhera para erguer sua torre de observação. Na recusa do casal em deixar o local, o preço do progresso falou mais alto: “[...] Ameaçador, soou nosso brado / Sem que nos fosse ouvido dado. [...] Mas cerimônia, então, não fiz / Deles livramos-te num triz. [...] Não sofreu muito o par vetusto / Caiu sem vida, já, no primeiro susto. [...]” (GOETHE, 2007, p. 937). Foi desta forma que Mefistófeles contou o ocorrido a Fausto.
[2] ROUANET, Sergio Paulo. As razões do iluminismo, p. 26.
[3] A expressão “o homem é lobo do homem” (Homo homini lupus) foi usada por Hobbes em sua obra Do Cidadão (Epístola dedicatória, p. 3) para justificar a necessidade de um Estado capaz de gerenciar uma sociedade que já não fosse mais constituída pelo homem em estado de natureza. “Para ser imparcial, ambos os ditos são certos ─ que o homem é um deus para o homem, e que o homem é lobo do homem. O primeiro é verdade, se comparamos os cidadãos entre si; e o segundo, se cotejamos as cidades”. Hobbes atribui ao homem da cidade características que seriam próprias do homem em estado de natureza, como agir somente pela sobrevivência.
[4] HEGEL, G.W.F. Curso de estética – o belo na arte, p. 80.
[5] Schiller apud Marcuse, 2009, p, 165.
[6] Cf. BARBOSA, Ricardo. Schiller & a cultura estética, p. 7.
[7] EEH-EPU, p. 39.
[8] EEH-EPU, p. 92.
[9] FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, p. 45.
[10] ARENDT, Hannah. A condição humana, p. 217.
[11] EEH-EPU, p. 149.
[12] EEH-EPU, p. 150.


BIBLIOGRAFIA

ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo – Revisão de Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. (p. 217)

BARBOSA, Ricardo. Schiller & a cultura estética. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. (p. 7)

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização – novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (p. 5)

GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto – uma tragédia. Trad. Jenny Klabin Segall. São Paulo: Editora 34, 2007. (p. 937)

HEGEL, G.W.F. Curso de estética – o Belo na arte. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Martins Fontes, 2009. (p. 80)

HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Tradução, apresentação e notas Renato Janine Ribeiro; coordenação Roberto Leal Ferreira. 2 ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1998. (Epístola dedicatória p. 3)

MARCUSE, Herbert. Eros e a Civilização. 8. ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2009. ( Capítulo 9 – A dimensão estética, p. 157-173)

ROUANET, Sergio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. (p. 26)

SCHILLER, Friedrich von. Cartas sobre a educação estética da humanidade. Introdução e notas de Anatol Rosenfeld. São Paulo: EPU, 1991. 

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei muito deste artigo. É bastante esclarecedor e didático - fácil de compreender.