sábado, fevereiro 12, 2011

O relativismo e o progresso da ciência como um processo não cumulativo

Por Nelson José de Camargo*

Há perdas e ganhos nas revoluções científicas, mas os cientistas tendem a ser particularmente cegos quanto às primeiras.

Thomas Kuhn

INTRODUÇÃO
O progresso da ciência, tal como tem sido verificado desde o século XVII, pode ser explicado pelo fato de que as novas teorias científicas podem “predizer e explicar mais fenômenos do que suas predecessoras”[1], ao menos na visão positivista. Ou a ciência está, ao longo do tempo, “aproximando-se progressivamente de um registro verdadeiro do mundo”[2], na visão realista. Sob o ponto de vista pragmatista, o progresso pode ser entendido como “um movimento em direção a realização de determinados fins”[3]. O relativismo, porém, sustenta a posição de que o progresso da ciência não é um processo cumulativo e não tem um fim. Esta dissertação pretende examinar a posição relativista.

PARADIGMAS
Para iniciar a discussão, é preciso distinguir os períodos que caracterizam o progresso científico na visão relativista. São os períodos pré-paradigma e pós-paradigma.

Paradigma é um conjunto de realizações que serve de base à prática científica futura; não é regra, não é método; serve de exemplo para a resolução de problemas futuros. Nas palavras de Thomas Kuhn, paradigmas são “exemplos que incluem conjuntamente leis, teoria, aplicação e instrumentação – fornecem modelos dos quais surgem tradições coerentes e específicas da pesquisa científica”[4].

“Visto de qualquer comunidade individual, seja de cientistas ou não cientistas, o resultado do trabalho criativo bem-sucedido é progresso”[5]. Mas esse progresso é muito difícil de ser detectado nos chamados períodos “pré-paradigma, quando há uma multiplicidade de escolas rivais”[6]. “Somente nos períodos de ciência normal o progresso parece óbvio e garantido. Durante esses períodos, porém, a comunidade científica não pode ver os frutos de seu trabalho de outra maneira”[7].

Não há método ou procedimento puramente lógico que possa ser usado para a escolha de um paradigma. Um “elemento aparentemente arbitrário, composto de acidentes históricos e pessoais, é sempre um ingrediente formativo das crenças adotadas por uma dada comunidade científica em um dado tempo”[8]. E tais crenças, juntamente com o contexto social e político de cada época, têm papel na escolha de um paradigma em relação aos paradigmas rivais. “Não há um algoritmo neutro para a escolha de teorias, nenhum procedimento sistemático de decisão que, empregado adequadamente, tem de levar cada indivíduo do grupo à mesma decisão”[9], prossegue Kuhn.

Não há ciência natural que não possua pelo menos um “corpo implícito de crenças teóricas e metodológicas inter-relacionadas que permite seleção, avaliação e crítica”[10].

“Para ser aceita como um paradigma, uma teoria precisa parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa, e na verdade não o faz, explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada”[11]. E é perfeitamente possível que uma nova teoria não explique fenômenos que eram explicados pelas teorias anteriores. É o caso, por exemplo, dos vórtices de Descartes, que explicavam o fato de todos os planetas do sistema solar se moverem na mesma direção e no mesmo plano, fato ignorado pela mecânica newtoniana[12]. Na visão relativista, sempre ocorrem perdas explicativas na transição de uma teoria para outra.

O fato de uma comunidade científica compartilhar paradigmas implica “compromisso com as mesmas regras e padrões para a prática científica. Esse compromisso e o aparente consenso que ele produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a gênese e a continuação de uma tradição de pesquisa específica”[13].

Os cientistas que não aceitam o novo paradigma têm de “prosseguir isoladamente ou ligar-se a algum outro grupo”[14]. A pesquisa científica, no contexto da ciência normal, “é dirigida para a articulação dos fenômenos e teorias que o paradigma já fornece”[15]. Sua principal atividade, portanto, consiste no “ajuste” entre os fenômenos e as teorias.

REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS
A ciência normal segue seu curso enquanto “a comunidade científica aceita sem questionamentos soluções específicas já encontradas para os problemas”[16]. Trata-se de uma atividade “grandemente determinada, mas não precisa ser totalmente determinada por regras”. As regras, por sua vez, “derivam de paradigmas, mas paradigmas podem guiar a pesquisa mesmo na ausência de regras”.[17]

Mas há ocasiões em que surgem problemas para os quais os paradigmas não oferecem soluções satisfatórias, ou problemas que nem mesmo foram previstos pelas teorias determinadas pelo paradigma. Nesse caso, inicia-se o período de crise que caracteriza as revoluções científicas, isto é, a transição de um paradigma para outro. Nas palavras de Kuhn, “as revoluções científicas (...) são aqueles episódios não cumulativos de desenvolvimento nos quais um paradigma mais antigo é substituído total ou parcialmente por um novo, incompatível com o anterior”[18].

A adoção de um novo paradigma implica necessariamente a rejeição do paradigma anterior. “Rejeitar um paradigma sem simultaneamente adotar outro é rejeitar a própria ciência”[19].

O paradigma traz em si mesmo a chave se sua transformação. “Quanto mais preciso e abrangente for um paradigma, será um indicador mais sensível da anormalidade, e então ocorrerá uma ocasião para mudança de paradigma”[20].

A consciência da anormalidade “é pré-requisito para todas as mudanças de teoria aceitáveis”[21].

Um dos sintomas da crise durante a transição de paradigmas é a “proliferação de versões de uma teoria”[22]. “As regras da ciência normal se tornam cada vez mais confusas”, prossegue Kuhn. “Embora ainda haja um paradigma, poucos praticantes estão inteiramente de acordo sobre o que ele é. Mesmo as soluções-padrão de problemas já resolvidos anteriormente passam a ser questionadas”[23].

“Uma nova teoria surge somente depois de um fracasso notável na atividade normal de solucionar problemas”[24] por meio das regras e procedimentos determinados pelo antigo paradigma. A solução desses problemas pode ter sido “pelo menos parcialmente antecipada durante um período em que não havia crise na ciência correspondente, mas na ausência de crise essas antecipações foram ignoradas”[25].

“Uma vez que tenha atingido o status de paradigma, uma teoria científica só é declarada inválida se uma candidata alternativa puder ocupar seu lugar”[26]. É exatamente nesse momento que termina o período de crise que caracteriza a transição entre paradigmas. Uma vez que o novo paradigma foi escolhido, ocorre o retorno para o estado de “ciência normal”, e o processo recomeça.

A transição de um paradigma para um novo é, portanto, “algo distante de um processo cumulativo que possa ser atingido por uma articulação ou extensão do antigo paradigma. É antes a reconstrução da área a partir de novos fundamentos, uma reconstrução que muda as mais elementares generalizações teóricas da área, e também muitos dos métodos e aplicações do paradigma”[27].

A “reconstrução da história é regularmente completada por textos científicos pós-revolucionários”, prossegue Kuhn. O objetivo de tais textos é apresentar a ciência como um processo cumulativo e progressivo, que aproxima a comunidade cada vez mais da verdade. As novas teorias científicas são apresentadas como desenvolvimento das teorias anteriores. Essas teorias “ajustam os fatos, mas somente ao transformar informações previamente acessíveis em fatos que, para o paradigma anterior, nem sequer existiam”[28]. É por isso que os livros-texto têm de ser reescritos nos períodos pós-revolucionários. “Quando repudia um paradigma anterior, uma comunidade científica simultaneamente renuncia (...) à maioria dos livros e artigos nos quais aquele paradigma ganhou forma”[29].

Um exemplo dessa “reescrita” da história da ciência pode ser a afirmação de Newton nos Principia de que Galileu “descobriu que a força constante da gravidade produz um movimento proporcional ao quadrado do tempo”[30]. Aqui claramente Newton leu a teoria galileana com base nos paradigmas de sua própria teoria, e atribuiu a ela formulações que não são encontradas no texto original. Galileu não escreveu em sua obra nada semelhante, constata Kuhn. Tal fenômeno pode lembrar o que algumas vezes ocorre nas ciências humanas, particularmente na história, quando os acontecimentos políticos e econômicos mudam radicalmente a interpretação que é dada a certos fatos. Algumas figuras históricas “caem em desgraça”, outras são “reabilitadas”. O passado tende a ser visto com os olhos do presente.

Durante as crises, um cientista “irá constantemente tentar gerar teorias especulativas que, se bem-sucedidas, podem abrir o caminho para um novo paradigma e, em caso contrário, podem ser abandonadas com relativa facilidade”[31].

Mas a mudança para um novo paradigma sempre ocorre de uma vez. “A pista que possibilita uma articulação posterior surge de uma vez, algumas vezes no meio da noite, na mente de um homem profundamente mergulhado na crise”[32]. Isso não impede, porém, que um novo paradigma surja, “pelo menos como embrião, antes que a crise se desenvolva ou seja explicitamente reconhecida”[33].

“Cientistas individuais adotam um novo paradigma por todos os tipos de razões e geralmente por várias delas ao mesmo tempo. Muitas dessas razões (...) estão completamente fora do que aparentemente é a esfera da ciência”[34].

Não se pode desconsiderar o fato de que a ciência é uma atividade social e humana. Não ocorre em um mundo platônico e desinteressado de relações mentais; é produzida por cientistas que têm os mesmos interesses e preocupações que as pessoas comuns[35]. Fatores sociais, políticos e econômicos têm um papel que não pode ser desprezado na escolha entre teorias científicas.

O “desenvolvimento científico é uma sucessão de períodos ligados pela tradição pontuados por rupturas não cumulativas”[36], diz Kuhn.

Isso não quer dizer, porém, que o relativismo desconsidere qualquer forma de avanço nas ciências naturais. A “mecânica de Newton representa um avanço em relação a Aristóteles e Einstein representa um avanço em relação a Newton como instrumentos para a resolução de problemas. Mas na sua sucessão não há direção coerente ou desenvolvimento ontológico”[37].

A história da ciência pode ser vista como “um processo de evolução de inícios primitivos – cujos sucessivos estágios são caracterizados por um entendimento cada vez mais detalhado e refinado da natureza.” Mas não é um “processo em direção a alguma coisa”[38]. Segundo Kuhn, essa foi a principal razão pela qual a teoria da evolução de Darwin enfrentou tanta resistência. O processo evolucionário não era um conjunto de etapas rumo a uma realização perfeita, ou a conclusão de um plano previamente estabelecido (por Deus?). Em vez disso, a evolução foi determinada pela seleção natural, processo pelo qual os seres mais adaptados ao ambiente e mais bem-sucedidos na busca de alimento foram os que tiveram descendentes e perpetuaram a espécie. Esse processo não tem um “fim” definido. Ocorre continuamente, e continua a ocorrer, inclusive com o ser humano. “O que ‘evolução’, ‘desenvolvimento’ e ‘progresso’ poderiam significar na ausência de uma meta específica? Para muitas pessoas, esses termos de repente se tornaram contraditórios em si mesmos”[39].

E é por isso que o relativismo rejeita a perseguição da “verdade” como objetivo. “Podemos (...) abandonar a noção, explicita ou implícita, de que mudanças de paradigma levam os cientistas e todos os que aprendem a partir deles para cada vez mais perto da verdade. Não há “verdade” que possa ser conhecida, pois é impossível saber se qualquer teoria científica é verdadeira ou não.

A COMUNIDADE CIENTÍFICA
“A própria existência da ciência depende de conferir o poder de escolha entre paradigmas aos membros de um tipo especial de comunidade”[40], diz Kuhn.

Os membros dessa comunidade, ou grupo, “em virtude de seu treinamento e experiência compartilhados, têm de ser vistos como os únicos possuidores das regras do jogo ou de alguma base equivalente para julgamentos claros”[41]. Esse grupo é a comunidade científica.

A existência de comunidades científicas e o conhecimento por elas produzido é um fenômeno universal? Não para Thomas Kuhn. O desenvolvimento científico tal como o conhecemos “é produto da Europa nos quatro últimos séculos. Em nenhum outro tempo ou lugar houve apoio às comunidades muito especiais das quais se origina a produtividade científica.” Pode-se constatar aqui a negação do “caráter universal da ciência”, outro ponto importante da visão relativista.

CONCLUSÃO
Como podemos compreender ao examinar o texto de Thomas Kuhn, o relativismo rejeita a noção de progresso da ciência como um processo linear e cumulativo. nega a tese realista de que o contínuo aperfeiçoamento das teorias científicas aproxima cada vez mais o conhecimento científico da verdade, e rejeita a posição pragmatista de que o progresso científico é um movimento em direção a determinados fins. A escolha de paradigmas é feita com base em critérios antes arbitrários do que lógico-racionais, pois a ciência é uma atividade humana como outra qualquer, e é inquestionavelmente afetada por fatores que não pertencem à esfera científica. Pode-se argumentar que a radicalização da posição relativista leva a um ceticismo que é a negação da possibilidade de qualquer conhecimento, científico ou não, e que o relativismo traz em si mesmo sua própria negação, pois no fundo trata-se de “mais uma teoria construída com base em paradigmas”, e não poderemos jamais saber se qualquer teoria é verdadeira ou não. Obviamente não é preciso chegar a tais extremos. Laudan demonstrou de forma consistente algumas incoerências e fraquezas de vários argumentos relativistas, mas não se pode negar que, ao questionar os conceitos defendidos por realistas, positivistas e pragmatistas, o relativismo proporciona um debate filosófico que é, no mínimo, instigante.

*Nelson José de Camargo é Bacharel em Filosofia pela USP


BIBLIOGRAFIA
KUHN, Thomas. The structure of the scientific revolutions. Chicago: University of Chicago Press, 1996.
LAUDAN, Larry. Science and relativism. Some key controversies in the philosophy of Science. Chicago: University of Chicago Press, 1990.

[1] Laudan, L. Science and relativism, p. 3.
[2] Ibid., p. 17.
[3] Ibid., p. 18.
[4] Kuhn, T. The structure of scientific revolutions, p. 10.
[5]Ibid., p. 162.
[6] Ibid., p. 163.
[7] Ibid., p. 163.
[8] Ibid., p. 4.
[9] Ibid., p. 200.
[10] Ibid., p. 16-17.
[11] Ibid., p. 17-18.
[12] Op. cit., p. 15-16.
[13] Ibid., p. 11.
[14] Ibid., p. 19.
[15] Ibid., p. 24.
[16] Ibid., p. 48.
[17] Ibid., p. 42.
[18] Ibid., p. 92.
[19] Ibid., p. 79.
[20] Ibid., p. 65.
[21] Ibid., p. 67.
[22] Ibid., p. 70-71.
[23] Ibid., p. 83.
[24] Ibid., p. 74-75.
[25] Ibid., p. 75.
[26] Ibid., p. 77.
[27] Ibid., p. 84-85.
[28] Ibid., p. 141.
[29] Ibid., p. 167.
[30] Ibid., p. 139.
[31] Ibid., p. 87.
[32] Ibid., p. 89-90.
[33] Ibid., p. 86.
[34] Ibid., p. 152-153.
[35] Op. cit., p. 147.
[36] Ibid., p. 208
[37] Ibid., p. 207
[38] Ibid., p. 170-171.
[39] Ibid., p. 172.
[40] Ibid., p. 167.
[41] Ibid., p. 168.

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