segunda-feira, janeiro 31, 2011

Filosofia para quem?

PALESTRA PROFERIDA PELO PROFESSOR PAULO HENRIQUE FERNANDES SILVEIRA*

Essa mesa de debate foi composta, imagino que propositalmente, por pesquisadores de diferentes áreas. Na incumbência de representar o departamento de filosofia, não pretendo convencê-los de coisa alguma, mas ficarei satisfeito se conseguir mostrar a pertinência de certas questões sobre o ensino e a pesquisa.

Na última segunda-feira, 14/9/2009, num grande jornal de São Paulo, Luiz Felipe Pondé, colunista e professor universitário, elaborou um relatório sobre o ensino e a pesquisa no Brasil:

CLÓVIS ROSSI pergunta em sua coluna do dia 8 de setembro, página A2, se no Brasil vivemos algo como o que acontece hoje na vida universitária da Espanha: desinteresse dos alunos e asfixia burocrática dos professores. Sim, há semelhanças.

Nos anos 50, o filósofo norte-americano Russel Kirk descrevia um fenômeno interessante nas universidades americanas.

A partir do momento em que a vida acadêmica se tornou objetivo da ‘classe média’, gente sem posses, a vida universitária entrou em agonia porque a proletarização dos acadêmicos se tornou inevitável” (Pondé, L. “Um relatório para a academia”, In. FOLHA DE SÃO PAULO, 14/9/2009, E9).”

Esse tal filósofo americano, Russel Kirk, foi um defensor de várias teses conservadoras, como a da manutenção do princípio da diversidade. No texto Dez Princípios conservadores, Kirk afirma :

“Para a preservação de uma saudável diversidade em qualquer civilização, nela devem sobrevir ordens e classes, diferenças em condições materiais e diversos modos de desigualdade (...) todas as demais tentativas de nivelamento irão conduzir, na melhor das hipóteses, à estagnação social” (Kirk, Dez princípios conservadores).

No âmbito acadêmico, a diversidade necessária a que se refere Kirk implicaria numa seleção de alunos e de professores que tenha por critério a classe social. A Universidade não pode ser para todos, defende o filósofo americano. Fiel às suas ideias, Kirk abandonou a carreira de professor quando percebeu que teria de lecionar para pessoas de classes sociais menos privilegiadas.

Considero esse texto de Pondé honesto e generoso. Ao aproximar a indagação de Clovis Rossi às teses desse filósofo americano, Pondé expõe honestamente os princípios conservadores daqueles que temem a proletarização do ensino e da pesquisa universitária. O texto de Pondé é, também, generoso, na medida em que não se furta de maneira alguma ao debate.

É muito mais difícil começar um debate quando os princípios que sustentam determinadas posições não estão expostos. O próprio texto de Clovis Rossi não expõe claramente seus princípios.

Por exemplo, não estava claro, no texto de Clovis Rossi, como nem sempre está claro no discurso de pessoas que parecem concordar com o colunista, que por trás da sua crítica à formação dos alunos que ingressam na Universidade, possa estar a tese de que o ensino e a pesquisa não são para todas classes sociais.

Como não sou sociólogo, faltam-me elementos para analisar o princípio conservador da diversidade, defendido por Russel Kirk, como não sou psicólogo, faltam-me dados para analisar seu pânico frente a pessoas que lhe pareçam diferentes.

Desse modo, estrategicamente, vou reformular a questão para aproximá-la da minha área de estudo. Ao invés de analisar se o ensino e a pesquisa são para todas as classes sociais, me proponho analisar se a filosofia é acessível a qualquer pessoa.

II.
Nos últimos anos, tenho estudado as filosofias antigas, especialmente, as de Platão e de Aristóteles. Como muitos sabem, esses dois filósofos dirigiram grandes escolas: a Academia e o Liceu.

Nascido numa importante família da Macedônia, ainda jovem, Aristóteles foi enviado à Atenas para aprender com Platão. Assim que esse faleceu, Aristóteles fundou, também em Atenas, sua própria escola de filosofia.

Essas experiências pedagógicas e administrativas de Platão e de Aristóteles instigam uma série de questões. Afinal, quem freqüentava essas escolas? O que se exigia de uma pessoa que desejava se tornar um filósofo? Ela deveria ser de uma família com poder econômico ou político? Cobrava-se algum dinheiro dos estudantes? Homens e mulheres tinham, igualmente, acesso a essas escolas? Aceitavam-se alunos de qualquer idade? Havia alguma forma de seleção ou de concurso para o ingresso nessas escolas?

Não há registros que ofereçam informações precisas sobre a Academia de Platão ou o Liceu de Aristóteles. No entanto, em seus textos sobre a formação dos filósofos, os antigos reconhecem uma condição fundamental para essa atividade: o tempo livre do ócio. Em grego, a palavra ócio se diz skholé.

O filósofo precisa encontrar tempo livre para pensar, sobretudo, para pensar sobre si mesmo. Mas o que significa ter tempo livre?

Em muitos textos de Platão e de Aristóteles, esse tempo para pensar está associado ao tempo do passear.

Os discípulos de Aristóteles são chamados de peripatéticos, ou seja, de andarilhos, pois as aulas que ocorriam após o almoço eram ministradas ao ar livre, o professor ia andando e conversando com seus alunos que, dessa maneira, não cochilavam. Uma boa ideia para as aulas noturnas.

Meu vô materno, o sociólogo Florestan Fernandes, de quem falarei daqui a instantes, aconselhava a também socióloga e minha mãe Heloisa Fernandes, a sair pedalando por ai quando lhe faltavam idéias para seus livros.

Pois vejam, o tempo livre do ócio não é, apenas, um tempo em que a pessoa não precisa se dedicar ao trabalho, ele é, também, um tempo para deixar-se levar num passeio livre, sem compromissos, sem obrigações, sem destino certo.

Um tempo em que a pessoa sai à procura, sem saber exatamente o que poderá encontrar. Como minha mãe, socióloga, que sai pedalando na esperança de dar algum desfecho para suas indagações.

As duas coisas são estranhas para muita gente: preocupar-se em conseguir tempo livre para o ócio e vontade de passear sem saber para onde. Na vida agitada e tumultuada das grandes cidades, e a Atenas de Platão e de Aristóteles já passava por isso, não tem sentido ocupar o tempo fazendo nada, só pensando, como não tem sentido, sair andando por ai, sem rumo certo. Mais esquisito é apostar, como fazia Florestan, que a atividade intelectual dependa disso.

Seja como for, para os antigos, aquele que quer filosofar precisa praticar estas duas atividades: cultivar o ócio e passear. De cara, percebe-se um impedimento prático: quem precisa trabalhar o dia todo para ganhar seu sustento não tem tempo livre para pensar, passear, dialogar com os livros ou mesmo freqüentar uma escola.

Aqui temos, ao que parece, um impedimento social, não seria possível a um trabalhador fazer filosofia. Pior ainda se esse trabalhador vier de uma família onde não se cultivem os hábitos do ócio e do passeio sem destino.

Imaginemos o oposto, em alguém que venha de uma família tão abastada que possa usufruir de todo o seu tempo para pensar e passear. Isso não garante de forma alguma que essa pessoa se torne um filósofo.

A dificuldade de cultivar o tempo livre e de perceber o prazer de um passeio ao léu, ou seja, a dificuldade de manter essas atividades, não se restringe a uma questão econômica. Para muitas pessoas, essas atividades só se tornam possíveis com uma mudança de postura. Tanto o ócio como o passeio representam uma libertação do mundo das ocupações que permite a compreensão de algo novo.

III.
Num dos diálogos de Platão, seu protagonista principal, Sócrates, que foi uma pessoa simples e com as feições de um estrangeiro, é convidado para um passeio para além dos limites de Atenas. Corria a lenda de que ele nunca teria saído dessa cidade. Sócrates responde ao jovem Fedro que sempre encontra tempo para a skholé, para o livre pensamento e para a conversa, mas que ele nunca precisou ir ao estrangeiro para ouvir o novo e o diferente.

Isso não significa, afirma o filósofo Jacques Derrida, no livro intitulado Da hospitalidade, que Sócrates tema os estrangeiros, medo que os gregos chamam de xenofobia. Ao contrário, é esse estrangeiro que Sócrates traz em si que dialoga nos textos de Platão. É esse estrangeiro que o perturba e o faz criar nos seus tempos livres, de ócio e de passeio.

Minha questão era: a filosofia é acessível a qualquer pessoa? Não pode ser gratuito que Platão, um homem de posses e de poder, tenha feito de Sócrates, um homem simples e de feições estrangeiras, seu protagonista. É com esse mestre, no fundo, que Platão, Aristóteles e toda a história da filosofia dialogam.

Para ser honesto e generoso, como foi Pondé em seu relatório sobre a educação e a pesquisa no Brasil, devo confessar os princípios do meu discurso. Sempre que penso no diálogo com um estrangeiro, lembro do meu avô, homem simples e sem posses, que tinha um nome estrangeiro, Florestan.

Esse nome não denota, como muitos poderiam pensar, uma origem alemã. Nada disso, Florestan foi filho de dona Maria, camponesa vinda de Portugal, que sustentava o filho trabalhando numa casa de família. O nome do filho não vem de nenhum parente, nem da música de Schumann, Florestan era o motorista da casa onde minha bisavó trabalhava como doméstica. De qualquer maneira, meu vô, como Sócrates, dialogou a vida toda com esse estrangeiro que morava nele mesmo.

Bom para ele, para a sociologia e para o ensino e a pesquisa no Brasil, esse diálogo com o estrangeiro certamente lhe ajudou, além do ócio, dos passeios e dos muitos amigos, a escrever tantos e importantes livros.

Queria interromper minhas indagações contando uma anedota sobre Florestan que me lembrou os passeios de Sócrates. Certa vez, um importante sociólogo francês perguntou-lhe em tom de deboche: vocês estudam Durkheim no Brasil? Como quem diz: sociologia vá lá, mas um autor tão complexo vocês não podem entender. Florestan respondeu: - eu estudo Durkheim no bonde!

Em seu livro sobre Florestan Fernandes, o crítico literário Antonio Candido explica: Florestan não gostava de perder tempo, estava sempre lendo, estudando e criando novas ideias.


*Paulo Henrique Fernandes Silveira é Doutor em Filosofia pela USP

2 comentários:

Nelson disse...

Belo texto. Precisamos de mais pessoas como Florestan Fernandes para agitar nosso meio acadêmico!

Vera Helena disse...

Dialogar com seu próprio estrangeiro, este parece um bom hábito, Professor Paulo Fernandes Silveira. Belíssimo e delicado texto.