quinta-feira, janeiro 27, 2011

A estética kantiana

Por Nelson José de Camargo*

Kant, em suas três Críticas, procurou estabelecer princípios universais e necessários que servem de fundamento para o ânimo[1] (Gemüt). Na Crítica da razão pura, investigou os princípios para o conhecimento teórico, que inclui o conhecimento científico; na Crítica da razão prática, o objeto foi o agir prático humano, e a lei moral que rege as ações de um indivíduo racional; A Crítica do juízo investiga os juízos formulados pelo homem em relação a objetos da natureza, ou segundo as impressões que esses objetos causam em nossa mente.

Se o conhecimento humano é construído sobre juízos sintéticos a priori, e nossas ações morais são determinadas pelo imperativo categórico, seria possível estabelecer princípios universais e necessários – a priori – para juízos estéticos?

O conhecimento que temos das coisas é na verdade o conhecimento das representações dessas coisas, pois não é possível conhecer as coisas em si. O que conhecemos, portanto, é o mundo das representações, ou dos fenômenos.


A capacidade de receber representações constitui a sensibilidade (Sinnlichtkeit), e a capacidade de produzir as próprias representações constitui o entendimento (Verstand). Uma coisa é percebida por nossos sentidos como intuição (Anschauung), e conceito puro (reiner Begriff) é a forma do pensamento (Form des Denkens) de um objeto em geral[2].

Todos os nossos conhecimentos começam com a experiência, mas há aqueles que não são resultado de qualquer experiência, um “conhecimento puro” (reine Erkenntinis), de caráter universal e necessário. A “matemática seria um brilhante exemplo[3]” desse tipo de conhecimento.

O sentimento de prazer ou desprazer não é objetivo. Não envolve nenhum conhecimento sobre o objeto. Está ligado à conformidade a fins do objeto em relação às faculdades do conhecimento. Logo, o juízo de gosto é reflexivo, ligado à consciência e a reflexão sobre a conformidade a fins.

Gosto, portanto, “é a faculdade do juízo estético de escolher (ajuizar algo como belo ou não) de um modo universalmente válido”[4].

O juízo de gosto, pelo qual avaliamos se algo é belo ou não, é estabelecido a partir da representação empírica que temos dos objetos. Logo, não pode ser determinante. No entanto, como a conformidade a fins é um princípio a priori, isto é, universal e necessário para todos os seres racionais, é possível falar de uma crítica do juízo, que vai tratar justamente dos princípios pelos quais um objeto pode ser ajuizado como belo.

O belo é, portanto, belo para todos (caráter universal), ou não é belo. Um juízo que determina algo como agradável para uma pessoa, mas que pode não o ser para outra, é meramente determinante, e por isso não é um juízo estético.

Kant liga o sentimento de prazer à “concordância da natureza na multiplicidade de suas leis particulares com a nossa necessidade de encontrar para ela a universalidade dos princípios que tem de ser ajuizada segundo toda nossa perspiciência[5] (Einsicht) como contingente, mas igualmente como imprescindível para as nossas necessidades intelectuais (...) como conformidade a fins, pela qual a natureza concorda com a nossa intenção, mas somente enquanto orientada para o conhecimento”[6].

O fundamento que determina se algo é belo ou não é subjetivo, ligado às faculdades do entendimento e da imaginação. E possui uma parte sensível (ligada á sensação) e uma parte reflexiva (ligada ao entendimento e à imaginação).

“A complacência[7] (Wohlgefallen) no belo tem que depender da reflexão sobre um objeto, que conduz a um conceito qualquer (...) e dessa maneira distingue-se também do agradável, que assenta inteiramente nas sensações”[8], diz Kant. E o sentimento de prazer (complacência) que um objeto nos provoca tem de ser absolutamente “desinteressado e livre”, ou seja, não pode estar ligado a nenhum interesse, do contrário não é um juízo estético.

O juízo sobre um objeto, ou melhor, sobre a representação desse objeto, independentemente de qualquer interesse, que é ajuizado como belo, é um juízo estético.

A conformidade a fins subjetiva de um objeto constitui a complacência, que é “universalmente comunicável com o conceito”, ou seja, é o princípio a priori do juízo de gosto.

A apreciação de um objeto como belo é resultado do livre jogo entre as faculdades do entendimento e da imaginação. As faculdades do conhecimento que permitem esse sentimento de prazer são baseadas em princípios universais e necessários para todos, portanto, são resultado de simples reflexão. O juízo estético é reflexivo (ou reflexionante) e não determinante.

O juízo estético (juízo de gosto) pelo qual consideramos algo como belo é singular, resultado de reflexão subjetiva de cada um, mas se assenta sobre princípios válidos universalmente. O singular pode assim se tornar universal.

Kant distingue quatro momentos do juízo de gosto puro sobre o belo. No primeiro momento, o juízo de gosto é analisado em relação à qualidade. O juízo de gosto formulado a partir da representação de um objeto, que nos causa uma complacência pela sua conformidade a fins, é determinado segundos princípios puramente subjetivos, que não envolvem nenhum conhecimento sobre o objeto. E essa complacência tem de ocorrer sem que haja nenhum interesse, ou seja, é um sentimento de prazer ligado unicamente à representação do objeto, sem considerar condições contingentes, como a utilidade do objeto. Tal complacência é um juízo estético.

O segundo momento trata do juízo de gosto em relação à quantidade. A reflexão vai determinar o grau de universalidade dos princípios que possibilitam ajuizar algo como belo.

Só é possível buscar princípios universais e necessários – portanto, são princípios a priori – em algo que possa ser ajuizado como belo por todos.

Podemos apenas comunicar universalmente conhecimento e representação. Não é possível tornar universal um conceito sobre o objeto, pois nesse caso recairíamos no agradável, o que não é um juízo estético.

O ajuizamento estético só pode ocorrer pelo livre jogo das faculdades do entendimento e da imaginação, e jamais por conceitos determinados. Tal ajuizamento “simplesmente subjetivo (estético) do objeto ou da representação (...) precede, pois, o prazer no mesmo objeto e é o fundamento desse prazer na harmonia das faculdades do conhecimento[9].” Este é, portanto, o princípio a priori do juízo de gosto.

O terceiro momento do juízo de gosto trata da conformidade a fins em geral.

A complacência que um objeto ajuizado como belo nos provoca não é a “representação de um fim objetivo”, mas somente a conformidade a fins subjetiva que a representação do objeto nos causa.

Essa conformidade a fins, que percebemos graças ao livre jogo entre as faculdades do entendimento e da imaginação, é que vai despertar a complacência, que é “comunicável universalmente sem conceito”. É o fundamento determinante do juízo de gosto, a partir do qual é possível estabelecer “princípios a priori” para a faculdade do juízo. Somente o estabelecimento desses princípios torna possível uma “crítica” sobre o juízo.

O quarto momento do juízo de gosto se refere à modalidade da complacência. Trata-se da complacência despertada por um objeto ajuizado necessariamente como belo, isto é, que seja belo para todos, a partir de um princípio subjetivo que não pode ser determinado por conceitos, mas tem de ser universalmente válido.

Sem ser um conhecimento, a complacência tem de ser comunicada universalmente. E como é necessariamente um sentimento comum a todos, não pode ser resultado da experiência.

A arte bela, diz Kant, “é um modo de representação que é por si própria conforme a fins e, embora sem fim, todavia promove a cultura das faculdades do ânimo para a comunicação em sociedade[10]”.

Considerando o “belo como o que apraz no simples ajuizamento”, uma obra de arte só pode ser ajuizada como bela enquanto objeto estético, desvinculado de qualquer interesse ou sensação meramente agradável.

Um objeto artístico, ainda que simule um objeto da natureza, tem de ser percebido como arte, ou não pode ser ajuizado como belo. Logo, cada ser racional deve ser capaz, utilizando as faculdades do entendimento e da imaginação, de ajuizar uma obra de arte como bela.

No entanto, apreciar uma obra de arte não implica necessariamente capacidade para criá-la. Para tanto, é preciso ter “talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada[11]”. Esse talento é o do gênio.

“A beleza da arte é a representação bela de uma coisa[12]”, e o gênio é capaz de criar essa representação. Para Kant, gênio é alguém capaz de comunicar idéias estéticas, isto é, alguém que é capaz de, pela faculdade da imaginação, reunir conceitos que possam ser comunicados universalmente. Assim só é possível falar em gênio no campo da arte. Kant jamais classificaria um cientista como gênio, por mais brilhante que seja, tal como é comum em nossa sociedade contemporânea, pois é possível reproduzir, por meio do aprendizado e da razão, quaisquer invenções ou descobertas científicas. Mas não é possível ensinar alguém a criar uma obra literária, ou uma pintura, ou uma sinfonia. Quem imitar a obra de um grande artista não criará algo belo, não comunicará idéias estéticas. A “idéia estética não pode tornar-se um conhecimento porque ela é uma intuição (da faculdade de imaginação)”[13].

Como o juízo de gosto é a condição indispensável para ajuizar algo como belo, serve para disciplinar o gênio. Graças à capacidade de emitir juízos de gosto, o artista consegue permanecer “conforme a fins”. Suas criações artísticas “poderão obter uma aprovação duradoura e ao mesmo tempo universal”. Disciplinado pelo juízo de gosto, o artista dotado de gênio conseguirá comunicar suas idéias estéticas, e assim produzirá “arte bela”.


Nelson José de Camargo é Bacharel em Filosofia pela USP

[1] Foi adotada a tradução de Valerio Rohden e António Marques para a palavra Gemüt, em sua tradução da Kritik der Urteilskraft (Crítica da faculdade do juízo). Ver bibliografia.
[2] Kritik der reiner Vernunft, p. 97.
[3] Ibid., p. 50.
[4] Antropologia de um ponto de vista pragmático, p. 138.
[5] Valerio Rohden e António Marques, op. cit.
[6] Crítica do juízo, p. 30
[7] Valerio Rohden e António Marques, op. cit.
[8] Crítica do juízo, p. 52
[9] Ibid., p. 62
[10] Ibid., p. 151.
[11] Ibid., p. 153.
[12] Ibid., p. 157.
[13] Ibid., p. 187.

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