sábado, fevereiro 26, 2011

O método como caminho para o conhecimento verdadeiro

Por Nelson José de Camargo*

As descobertas científicas que começaram a ocorrer na época do Renascimento provocaram uma mudança radical no pensamento humano. Copérnico e Galileu comprovaram que a Terra era apenas um planeta que girava em torno do Sol, e não mais o centro imóvel do Universo; Newton, com a Lei da Gravitação Universal, explicou o movimento dos corpos celestes com base em leis mecânicas; a prensa de tipos móveis, aperfeiçoada por Gutenberg, permitiu que os livros fossem produzidos em maior quantidade e com menor custo, o que facilitou a divulgação dos novos conhecimentos; e a Reforma protestante rompeu a hegemonia da Igreja Católica Romana.

Nesse cenário de mudança, o pensamento humano (seja a filosofia natural, que hoje compreende as diversas ciências, quanto a filosofia moral – o que conhecemos hoje como filosofia) também passou por transformações.


“A natureza está escrita em caracteres matemáticos”, afirmou Galileu, que, ao apontar sua luneta para o céu em 1609, fez descobertas que abalaram a astronomia de Ptolomeu, há séculos aceita como verdadeira: havia quatro pequenos planetas girando ao redor de Júpiter (Io, Europa, Ganimedes e Calisto, hoje conhecidos como satélites de Galileu); a Lua era formada por rochas semelhantes às encontradas na Terra, e possuía montanhas, vales e crateras; logo, o Universo não era formado por objetos perfeitos, com um centro conhecido, tal como imaginavam os filósofos gregos.

O método para os modernos
Cada coisa que existia por si mesma era considerada como substância. Os antigos gregos e romanos conceberam uma infinidade de substâncias, cada uma delas com seus modos ou acidentes; e o mundo era dividido conforme uma hierarquia: do mais perfeito para o menos perfeito: Deus – anjos – alma – corpos.

Essa concepção ruiu com os modernos: para Descartes, as substâncias são apenas três: extensão (matéria dos corpos), pensamento (alma) e o infinito (substância divina, ou Deus); para Espinosa, só há uma substância, a divina.

Cada substância possui um atributo principal, isto é, uma essência: a da extensão é a matéria (que tem figura, ou forma definida, grandeza, e está em movimento ou em repouso); a essência do pensamento é a inteligência e a vontade humana; e a essência do infinito é Deus, considerado como causa de todas as coisas, um ser infinito e que não foi criado).

Atingir a verdade é conhecer a causa da essência: essa causa pode ser eficiente (relação direta entre causa e efeito) ou final (quando os seres dotados de vontade livre agem tendo em vista um fim). Essa concepção, adotada pela maioria dos filósofos modernos, se opõe à concepção antiga e medieval de que havia quatro causas: material, eficiente, motriz e final (que não serão abordadas nessa dissertação).

O problema é que só há relações causais (de causa e efeito) entre coisas da mesma substância; a extensão só produz efeitos extensos, ou seja, que afetam a matéria; o pensamento só age no campo das idéias; o infinito produz efeitos finitos e infinitos, mas não pode ter causas finitas.

Como os seres humanos são constituídos de duas substâncias (extensão e pensamento), as coisas extensas não podem causar efeitos no pensamento, nem o pensamento causar efeitos nas coisas extensas, pois são substâncias de natureza diferente. Descartes vai solucionar esse problema ao restringir sua investigação filosófica ao campo das idéias.

O conhecimento das coisas, ou melhor, das idéias das coisas, é atributo exclusivamente da razão, isto é, da luz natural da qual são dotados todos os seres racionais. Não depende de revelação divina. Assim, para os modernos, o conhecimento verdadeiro se dá por representação, isto é, correspondência entre idéia e ideado. Para verificar se essa correspondência é correta, será adotado o método.

O método para Bacon
Francis Bacon é considerado um dos criadores do método experimental, embora não possuísse os conhecimentos matemáticos necessários para um cientista (tal não ocorre com Descartes). De qualquer forma, pretendeu elaborar um método de investigação da natureza a partir da experiência. Com os resultados obtidos nas experiências, obtêm-se as formas gerais, que irão constituir as leis e causas dos fenômenos. Esse procedimento é denominado de método indutivo.

Os conhecimentos alcançados até a época de Bacon teriam sido resultado principalmente do acaso e da tentativa. “As ciências que ora possuímos nada mais são que combinações de descobertas anteriores. Não constituem novos métodos de descoberta nem esquemas para novas operações”[1].

Para Bacon, há quatro espécies de “ídolos” que bloqueiam a mente humana e a impedem de atingir o conhecimento verdadeiro: os ídolos da tribo, os ídolos da caverna, os ídolos do foro e os ídolos do teatro. A “formação de noções e axiomas pela verdadeira intuição é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos”[2].

Os ídolos da tribo estão fundados na natureza humana, na concepção falsa de que os sentidos humanos são a medida das coisas. Os ídolos da caverna são os homens enquanto indivíduos, os que buscam o conhecimento em seus pequenos mundos, em suas cavernas – alusão à alegoria da caverna da República de Platão. Os “ídolos provenientes, de certa forma, do intercurso e da associação recíproca de indivíduos do gênero humano entre si”[3] são os ídolos do foro. Finalmente, os ídolos do teatro são os que “imigraram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas filosóficas e também pelas regras viciosas da demonstração”[4].

Bacon faz uma importante distinção entre experiência e experimento. O experimento é a experiência “ordenada e medida (...), dela deduzindo os axiomas e, dos axiomas, enfim, deduzindo novos experimentos.”[5] A experiência pura e simples é errática, vaga, e só conduz ao conhecimento verdadeiro por mero acaso. O método indutivo de Bacon “é o guia para a senda certa que, pela selva da experiência, conduz à planura aberta dos axiomas”[6].

Bacon tem um objetivo claro: compreender a natureza para dominá-la. “Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece”[7], diz ele no aforismo III do Novum Organon. E é só por meio da experiência disciplinada pela razão, controlada e metódica (o experimento), é que se obtém o poder sobre a natureza.

O método para Descartes
O conhecimento que temos das coisas por meio dos sentidos é enganoso. “Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez”[8], diz Descartes na Primeira Meditação.

Para obter o conhecimento verdadeiro, há alguns passos a ser seguidos. O primeiro é “jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente (isto é, sem que possa ser confundido com o que não é conhecido) como tal” O segundo é “dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e necessárias fossem para melhor resolvê-las”. O terceiro é “conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns dos outros”. O quarto é “fazer em toda parte enumerações tão complexas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir”.[9]

Assim Descartes constrói seu método, “conjunto de regras certas e fáceis cuja exata observação fará com que qualquer um nunca tome nada de falso por verdadeiro”[10], com o maior rigor matemático. Não se trata, simplesmente, de aplicar as matemáticas (aritmética, geometria, álgebra) para o conhecimento da realidade, mas sim obter um conhecimento completo, perfeito e dominado pela inteligência. Este ideal matemático, ou mathesis universalis, deve ser entendido como “ciência universal da medida e da ordem”, pois, de acordo com Foucault, “(...) as relações entre os seres serão realmente pensadas sob a forma da ordem e da medida, mas com este desequilíbrio fundamental de sempre se poderem reduzir os problemas da medida aos da ordem. De sorte que a relação de todo conhecimento com a mathesis se oferece como a possibilidade de se estabelecer entre as coisas, mesmo não-mensuráveis, uma relação ordenada.”[11]

Com a medida, é possível estabelecer as diferenças entre os seres; pela ordem, determina-se a primeira verdade, uma intuição, e a partir daí se estabelece a cadeia de razões. O primeiro termo de uma seqüência leva ao segundo, o segundo ao terceiro etc., sempre do mais simples ao mais complexo.

Já sabemos “que devemos rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que se pudesse imaginar a menor dúvida”[12]. Mas se consideramos todas as coisas que conhecemos como falsas, não podemos ignorar o fato de que, quando chegamos a essa conclusão, pensamos: “(...) enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que essa verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava”[13].

Ora, não há razão para acreditar que alguma coisa do mundo exterior tenha existência real fora da substância pensante. Tampouco é possível comprovar que as idéias oriundas de ações que independem de nossa vontade – como as sensações de calor, frio etc. – têm origem fora da substância pensante. Duvidar de tudo isso não é mero ceticismo, é uma decisão intelectual do indivíduo, ou seja, a dúvida é metódica. Isso não significa necessariamente que as coisas do mundo exterior não existem, ou que as sensações que obtemos sejam produtos de nossa mente; apenas não podemos ter certeza da sua existência.

Devemos então procurar por algo de que não podemos duvidar: se tudo o que tem origem no mundo exterior devem ser rejeitado como falso, porque duvidoso, não podemos negar que as idéias que temos sobre as coisas, ou que as idéias de calor, de frio etc. existem em nosso pensamento. São modos da substância pensante.

A primeira verdade – eu sou, eu existo (o cogito) – é uma intuição, “conceito que a inteligência pura e atenta forma com tanta facilidade e clareza que não fica absolutamente nenhuma dúvida sobre o que compreendemos (...)”[14]. A intuição é assim uma idéia clara, ou seja, que se apresenta por inteiro e de uma só vez para a substância pensante. É também uma idéia distinta, pois se distingue de todas as demais.

A partir do cogito, Descartes constrói a cadeia de razões, isto é, de uma intuição é possível fazer uma dedução, ou “conclusão necessária tirada de outras coisas conhecidas com certeza”[15].

No entanto, para sair da única certeza até agora obtida, uma idéia que é necessariamente verdadeira, “pois as coisas que concebemos mui clara e distintamente são todas verdadeiras”[16], e avançar na busca do conhecimento verdadeiro, Descartes precisa provar a existência de Deus, ou ficará restrito à certeza inicial do cogito. Para tanto, fará uso do princípio de causalidade, e adotará dois conceitos dos escolásticos: realidade formal (a substância em si, potência realizada em ato, e que tem pelo menos tanta realidade quando a causa que a originou) e realidade objetiva (isto é, que existe no campo das idéias, representação do objeto ideado). Mas, ao contrário dos escolásticos, que partiam da causa para investigar os efeitos, Descartes partirá dos efeitos (idéias) para as causas (Deus, a causa de tudo o que existe). Isso representa uma inversão em relação à filosofia antiga e medieval.

Toda causa tem um efeito, e todo efeito uma causa. “Daí decorre não somente que o nada não poderia produzir coisa alguma, mas também que o que é mais perfeito, isto é, o que contém em si mais realidade, não pode ser uma decorrência e uma dependência do menos perfeito”[17]. Logo, a substância pensante (o homem, enquanto capaz de pensar), com todas as suas imperfeições e fraquezas, não pode conceber como oriunda de si mesmo a idéia de um Deus perfeito, pois então a substância pensante seria perfeita – e seria Deus. Logo, “deveria haver algum outro mais perfeito, do qual eu dependesse e de quem eu tivesse recebido tudo o que possuía”[18]. E como tal idéia tem, pelo princípio da causalidade, realidade formal pelo menos equivalente à realidade objetiva (idéia de Deus presente na substância pensante), tal idéia só pode ter vindo de um Deus perfeito e infinito. Assim Descartes “prova” a existência de Deus na Terceira Meditação.

Estabelecido o método, dentro do rigor exigido pela mathesis universalis, o homem vai disciplinar e conduzir sua razão no caminho correto, e será capaz de intervir na realidade e de modificá-la. Isso é válido no campo da natureza (no caso da Filosofia Natural, que se subdividirá nas ciências que conhecemos: Química, Física, Biologia) e no campo político (Filosofia Política, cujos principais pensadores, Locke, Montesquieu e Hobbes, vão estabelecer os princípios do moderno Estado de Direito).


* Nelson José de Camargo é Bacharel em Filsofia pela USP

[1] Bacon, F. Novum organum. In: Os pensadores: São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 34.
[2] Ibid., p. 40.
[3] Ibid., p. 41.
[4] Ibid., p. 41
[5] Ibid., p. 65.
[6] Ibid., p. 65.
[7] Ibid., p. 33.
[8] Descartes: Meditações. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 93-94.
[9] Idem. Discurso do Método, segunda parte. Op. cit., p. 45-46.
[10] Ibid., p. 20
[11] Foucault, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 78.
[12] Descartes: Discurso do método, quarta parte. In: Os pensadores: São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 54.
[13] Ibid., p. 54.
[14] Idem: Regras para a orientação do espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 14.
[15] Ibid., p. 15
[16] Idem, op. cit. p. 55.
[17] Idem, Meditações, terceira meditação, op. cit. p. 112.
[18] Ibid., p. 56.

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