Por Nelson José de Camargo*
A palavra democracia significa “governo do povo”. Era usada para designar o sistema político de Atenas no período clássico, no qual os cidadãos atenienses, do sexo masculino e maiores de 18 anos, reuniam-se na Ágora para participar das decisões sobre o governo da cidade.
Hoje em dia, o governo de Atenas não seria considerado democrático, pois excluía da participação política mulheres, estrangeiros e escravos, ou seja, a maioria da população.
Para Aristóteles, havia três principais formas de governo: a monarquia, na qual o poder é exercido por uma só pessoa, o monarca; a aristocracia, na qual o governo está a cargo da elite (intelectual, financeira, agrária, etc.); e a democracia, no qual o poder é exercido diretamente pelo povo. Para o filósofo grego, as três formas de governo poderiam ser boas e justas, mas todas as três poderiam se transformar em formas degeneradas: a monarquia, se exercida por um rei injusto, se transforma em tirania; a aristocracia, ao privilegiar uma pequena elite, se transforma em oligarquia (governo de poucos); e a democracia pode se transformar em anarquia, isto é, ausência de governo, o que significa o caos e a desorganização política.
Desde a época da Revolução Gloriosa na Inglaterra e sobretudo após a Revolução Francesa, consolidou-se no Ocidente o sistema de democracia representativa, no qual os cidadãos elegem seus representantes para legislar e governar em nome deles. Não se trata, portanto, de democracia direta, como a ateniense.
O Brasil é considerado uma democracia, no sentido em que há um sistema político no qual os ocupantes do poder executivo – presidente da República, governadores e prefeitos – e os membros do poder legislativo – deputados federais, senadores, deputados estaduais e vereadores – são escolhidos em eleições livres e diretas pelo povo. Não deixa de ser estranho, porém, o fato de o povo ser obrigado a exercer esse direito. Voto obrigatório é uma contradição em termos. Se o voto não fosse obrigatório no Brasil, que parcela do eleitorado compareceria às urnas?
Já no éculo XVIII, Rousseau era um crítico do sistema de democracia representativa. “O povo inglês pensa ser livre e engana-se. Não o é senão durante a eleição dos membros do Parlamento”, diz ele no Contrato social.
Ainda segundo Rousseau, “a vontade de cada membro da comunidade política, isto é, a soma de todas as vontades particulares, constitui a vontade geral. O exercício da vontade geral é a soberania. E a soberania é indivisível e não pode ser representada, nem qualquer cidadão pode abrir mão dela, ou deixaria de ser livre. Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos de humanidade e mesmo aos próprios deveres”.
O poder legislativo, portanto, deve ser exercido pelo povo, e jamais por “representantes” do povo. “Os deputados não são, pois, nem podem ser, seus representantes, são somente seus comissários que não estão aptos a concluir definitivamente.”.
Mesmo num sistema representativo, há ocasiões em que o povo é chamado a exercer seus direitos de cidadão de forma direta. Foi o caso do plebiscito que decidiu sobre a forma de governo, monarquia ou república, e o sistema político, presidencialismo ou parlamentarismo. Outro exemplo de exercício de democracia direta foi o referendo no qual os cidadãos brasileiros declararam-se contrários à proibição da venda de armas.
Seriam essas consultas diretas aos cidadãos uma forma mais “verdadeira e autêntica de democracia? Não necessariamente. Plebiscitos e referendos podem ser convocados para atender a pressões políticas momentâneas. É o caso, por exemplo, da recente proposta de plebiscito para proibição da venda de armas, motivada pelo bárbaro crime cometido por um psicopata em uma escola do Rio de Janeiro. Ora, a população brasileira já não decidiu sobre essa questão? A convocação do plebiscito não passa de uma medida demagógica e eleitoreira, ideia de um político adesista que faz parte da elite mais retrógada deste país.
Não podemos esquecer que ditadores como Adolf Hitler chegaram ao poder por vias democráticas. Logo, a verdadeira democracia vai muito além de votar em eleições, plebiscitos e referendos. Significa inteirar-se sobre os fatos relevantes e exercer plenamente a cidadania, isto é, respeitar os direitos das outras pessoas, aceitar o livre exercício de opiniões, conviver bem com o diferente, acompanhar de maneira crítica e independente o trabalho de ocupantes de cargos públicos, exigir seus direitos e cumprir com os deveres. Quantos de nós cumprimos com tudo isso?
Democracia não significa liberdade absoluta, pois a vida em sociedade exige que cada um abra mão de algo em troca da proteção do Estado, tal como postulou Hobbes, e para isso abre mão voluntariamente de parte de sua liberdade. Não se constrói uma democracia somente com direitos, mas também pelo exercício dos deveres.
É democrático, por exemplo, deixar que uma pessoa fique se drogando o dia todo, tal como ocorre na cracolândia, no centro de São Paulo? De acordo com a atual Constituição, uma pessoa só pode ser presa em flagrante delito. Consumir drogas, mesmo em vias públicas, não é considerado crime. Os viciados têm o “direito” de ficarem nas ruas, e só podem ir para uma instituição se quiserem. Ou seja, essa atitude “democrática” condena essas pessoas a uma vida miserável e a uma morte rápida. Quem disse que não há pena de morte no Brasil?
Voltando a Rousseau: o pensador suíço estaria certo em sua crítica à representação política? Se não houvesse a democracia representativa não recairíamos em um dos tipos de regimes totalitários que assolaram (e assolam) a humanidade? Existe algum modelo alternativo que tornaria possível a existência de um regime político verdadeiramente comprometido com as aspirações da população, ou que permitisse uma participação efetiva no exercício do poder? Nem Rousseau, nem Hobbes, que trataram da política como ela deveria ser, deram respostas satisfatórias para essas questões. Maquiavel, que tratou da política como ela é, tampouco oferece uma solução. Essa é a tarefa de todos os que se interessam pelas questões políticas contemporâneas, dentro e fora dos círculos acadêmicos.
*Nelson José de Camargo é Bacharel em Filosofia - USP
Um comentário:
Nelson,
Parabéns pela lucidez no texto.
Concordo!
A questão da cracolândia é problema de governo, mas também da sociedade por meio das entidades representativas.
No congresso não se discute leis apropriadas... Fica sempre no paliativo.
Sem leis sérias, como por exemplo, proibição de consumo de drogas em locais públicos e liberação em domicílio privado, acrescido de garantias ao cumprimento da lei,tais como concedimento ao Estado a guarda do cidadão infrator que seria encaminhado a um local apropriado à sua autossustentação como uma fazenda agrícola administrada pelo Estado por exemplo.
É claro que coloco aqui de maneira tosca. Mas os congressistas são capazes de elaborar algo bem mais sofisticado. Aliás, ganham pra isso!
Abraço.
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