domingo, abril 24, 2011

“Tudo é verdade e nada é verdade”

Uma leitura da obra O estrangeiro de Albert Camus

Por Hailton Santos

Com a morte de Deus anunciada por Nietzsche o homem moderno sentiu-se livre para extrapolar suas emoções. Sem uma divindade a quem prestar contas, o homem da modernidade é livre para fazer aquilo que bem entender. Assim entendeu Smerdiakóv, personagem de Dostoiévski na obra Irmãos Karamazov (1879), que assassina o próprio pai com a justificativa de que vira um texto (supostamente do pai) com a seguinte frase: “Se Deus não existe tudo é permitido”. Como colorário, disse Smerdiakóv: “Se deus definitivamente não existe, então não existe nenhuma virtude, e neste caso ela é totalmente desnecessária”.[1] Aqui está o problema[2]. É esse o sentido de liberdade no mundo moderno. Sem ideais de bem comum, o homem da modernidade vive a sua insignificância existencial. O estrangeiro de Albert Camus é o retrato desse abismo existencial.

Meursault, personagem central de O estrangeiro, vive a “plenitude” e a “insignificância” do instante. Recusa a lógica da sociedade; a engrenagem que move as ações humanas e a busca por causa e efeito. Talvez porque não dê importância e sentido essencial às coisas no mundo. Isto ficou evidente quando lhe foi perguntado sobre o motivo de ter atirado no árabe. Ele simplesmente respondeu: “por causa do Sol”. Ou seja, não deu sentido aos fatos. Por assim dizer, uma gratuidade pela indiferença.

Como a indiferença vivida por Meursault é consequência da desilusão do homem moderno, desprovido de valores comunitários e guiado por “forças narcísicas”,[3] é possível relacioná-la à doutrina do eterno retorno apontada por Nietzsche?

Nietzsche, em A Gaia Ciência, aforismo 341, postula a perspectiva de um mundo sem metafísica, isto é, a noção de que não há outro mundo além deste mundo concreto. Nessa perspectiva, não haveria causa nem finalidade nas coisas. Um mundo entregue ao infinito do tempo com suas sucessões caóticas. Diz ele:

E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: essa vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e grande em tua vida haverão de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência [...] [4]

Assim, as coisas se repetiriam indefinidamente. Desejar que o curso da realidade tenha sido distinto ou será distinto do que sempre foi seria desejar o impossível. Seria então negar a realidade. Deste modo dever-se-ia viver como se cada momento de nossas vidas fosse retornar; um eterno retorno do mesmo. Esta seria uma forma radical de niilismo. Não mais a vontade de conservação; não mais a fórmula do humilde; não mais causa e efeito. Para Nietzsche, a grandeza do homem é aceitar essa condição. Pois, tudo é também nossa obra – “orgulhemo-nos disso”.

Voltando à obra de Camus, seu cerne é o assassinato de um árabe na praia. Na primeira tentativa de mudar o condicionado, Meursault viu-se arruinado:

Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça. [5] 

Apesar de sua indiferença a tudo e a todos, Meursault vivia uma vida regular, tinha um emprego fixo, tinha amigos e namorada. O inexplicável incidente na praia mudara sua rotina de vida. Porém, a sua indiferença diante do mundo permanece inalterada. Em seu julgamento, o personagem de Camus não se defendeu das acusações que lhe foram impostas. Fiel a sua indiferença, preferiu o silêncio.

Já na prisão Meursault buscava na lembrança uma forma de escapar ao tédio. Diz ele: “Acabei por não me entediar mais, a partir do instante que aprendi a recordar”. Para o personagem, quanto mais vivermos intensamente, mais temos do que lembrar. Continua Meursault: “quanto mais pensava, mais coisa esquecida ia tirando da memória. Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia poderia sem dificuldade passar cem anos numa prisão”. Nesse contexto, quanto mais recordações, mais prontos estamos para não nos entediarmos. Aqui vemos semelhanças com a doutrina nietzschiana do eterno retorno. Pois, vivendo o dia à sua maneira (fugindo às regras), Meursault encontrava uma forma de escapar do tédio. Por analogia, viver a seu modo, viver o instante e viver intensamente seria também viver na perspectiva de que tudo irá retornar. No caso de Meursault o retorno viria pelas recordações e, sendo boas recordações, seria também um alívio às tensões do dia a dia.

Há outro aspecto relevante em O estrangeiro que podemos associar à doutrina do eterno retorno. Trata-se do fato de que a imprensa (especialmente a televisiva), sob o pretexto de atingir as massas, faz um pré-julgamento dos fatos e o apresenta à sociedade como “verdades absolutas” e, esse movimento se repete indefinidamente. É fato que os meios de comunicação (imprensa) julgam as pessoas pelas atitudes supostamente “corretas”, e não pelo que as pessoas realmente são. No caso de Meursault o tribunal apenas deu o veredito formal, pois a sociedade já o havia condenado tamanha foi à exposição do caso na imprensa televisiva. Prova disso é que no julgamento não se falou do crime. Foram tratadas questões menores, como o fato de Meursault ter bebido café com leite no velório de sua mãe; de ter ido ao cinema no dia seguinte com a namorada entre outros fatos... Mas qual seria o problema em beber café no velório da mãe ou ir ao cinema com a namorada um dia depois do enterro da mãe? Na verdade, a imprensa já havia dado o veredito. Que importava então se, acusado de um crime, ele ter sido condenado por não ter chorado no enterro da mãe?


CONCLUSÃO
Tanto Camus em O estrangeiro, quanto Nietzsche em O eterno retorno, apontam para a necessidade de uma vida sem metafísica. Isto é, sem pressupostos a uma moralidade de ordem universal fundada no a priori. Em outras palavras, sujeitar-se a tais regras é sacrificar-se inutilmente, por assim dizer, um movimento circular que não nos leva a nada. Em última instância, viver nestas condições é negar a vida.

No entanto, essa não é a nossa visão de mundo. Acreditamos na possibilidade de uma forma de viver que extrapole a perspectiva do condicionado e do necessário. Afinal, o animal “humano” é capaz de fazer crítica a si mesmo. Ou seja, todo ser racional (em condições normais) é capaz de associar ideias e ligar aos fatos... Cabe aqui uma indagação: se temos a historiografia como fundamento empírico das ações humanas, por que ainda erramos tanto? Seria por preguiça e covardia, como disse Kant? Parece que sim. É mais cômodo aceitar as prescrições médicas como transcrição da cura do que refletir sobre; é mais cômodo seguir as orientações do líder espiritual do que agir por si próprio, é mais cômodo tomar a fala do professor como verdadeira do que promover indagações; por fim, é mais fácil aceitar a perspectiva niilista (aquele que foge a sua responsabilidade) do que se comprometer com a possibilidade de um mundo melhor e mais justo para todos. Nesse sentido, a superação individual em prol do universal é condição essencial à sociedade moderna. Isso não está ligado, necessariamente, à crença ou prática religiosa. Implica certo distanciamento de uma perspectiva niilista.

Se com base no a posteriori não chegamos ao bem comum, como postulou Kant; se somos capazes de agir contra a nossa natureza, como afirmou Rousseau; se “tudo é verdade e nada é verdade” como disse Meursault, então que busquemos formas “humanas” de convivência, já que dar significado às coisas é tarefa do homem. Nesse sentido, Nietzsche tem razão quando diz que a grandeza do homem é aceitar a sua condição.



[1] DOSTOIÉVSK, Fiódor, Os irmãos Karamázov. Tradução posfácio e notas de Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009. p. 816.
[2] Discorreremos acerca desse problema em nossa conclusão, ao final do texto.
[3] “Forças narcísicas” no sentido de homem entregue à satisfação de sua vontade particular. Alheio, portanto às questões de interesse comum. De acordo com Maria Rita Kehl in: Sobre ética e Psicanálise, o “eu narcísico” representa a desmoralização do código, ou seja, da “lei simbólica” legitimada pela formação cultural, pela tradição, pela educação, pelas religiões e grandes mitologias que tentam dar certa estabilidade (simbólica) e certa credibilidade na transição das gerações.
[4] NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. In: Nietzsche – Obras Incompletas. Seleção de textos de Gerard Lebrun; tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 208-209.
[5] CAMUS, Albert. O estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2010. p. 60.

Um comentário:

Nelson disse...

Hailton,

Este é um bom texto para iniciar uma discussão filosófica sobre o niilismo em todas as suas vertentes, inclusive ao daquele praticado pelos que levam ao extremo os "ideais ascéticos"...