Por Marcelo Cajui *
Meu horário estava apertado e havia um histórico de atraso com as entregas. Na época (2005) eu trabalhava no restaurante dos meus pais. O orçamento era baixo e filho do dono sempre faz de tudo. Eu dirigia um gol vermelho, no porta-malas dele havia trinta quentinhas protegidas por isopores. A grande distância entre o restaurante e o cliente me obrigava acelerar “um pouco”. Eudes, o cliente, pagava em dia e comprava uma quantidade razoável de almoços.
O caminho era pela Avenida Sapopemba (infinita). Na abertura de cada farol eu forçava o motor. Não dava importância para dirigir certo. O escapamento do carro reagia com pipocos. Neste momento a lei de Murphy se mostrou ativa, pois uma luz acendeu no painel e logo apagou, não liguei, achei que fosse bobagem. Continuei e a luz acendeu e apagou de novo (mais tarde soube que era a falta de óleo). O horário me cegou, fingi que não vi. Permaneci rumo ao bairro Terceira Divisão. Outra vez a luz acendeu daí prestei mais atenção, a cor era vermelha. Não apagou até o carro abrir o bico. Justamente quando a Avenida Sapopemba afunila e vira uma espécie de serra com barracos e casas mal acabadas por toda extensão lateral, um lugar violento. O motor rangia um esguicho agudo, levei até onde deu. Deixei na banguela até o último suspiro de vida do Gol.
“ENRASCADO” esta é a palavra, ainda por cima havia esquecido o celular no restaurante. “Tarefa dada é tarefa cumprida” (Tropa de Elite de Braulio Mantovani). Desci do carro, olhei em volta. A minha direita uns barracos pelo contorno do morro, a minha esquerda um precipício. Tirei meu boné da cabeça e soltei um palavrão para sonorizar a garganta, chutando em seguida o pneu do carro. A metalúrgica ficava meio quilômetro sentido sul. Num dos barracos um senhor me observava, curioso com a movimentação em frente da casa dele. Não vi nenhum orelhão. Fui até o senhor, sua aparência mostrava sofrimento. Ele me recebeu bem, sorriu e perguntou se eu estava com problemas. Respondi que sim, expliquei rapidamente a situação e pedi para usar um telefone. Seria uma surpresa ele dizer que tinha. Na hora parece drama, só depois acreditamos que são as pequenas coisas que nos marcam mais. Achei curioso aquele homem, deliberadamente ele quereria me ajudar. A solução precisava ser rápida, pois o tempo passava. Em uma conversa que durou pouco perguntei se ele tinha carro, eu pagaria aluguel. Imaginem se ele possuía? “Não tenho fio”, foi a resposta. Falei sobre minha necessidade em ser pontual. Ele foi complacente, acho que teve dó. Provavelmente meu pedido foi uma surpresa, com certeza ele sabia melhor do que eu sobre a violência na cidade e sobre aparências que enganam. Como um típico paulistano sou desconfiado.
Ambos analisávamos as possibilidades. O olhar do homem velho cansado de respiração pesada era bondoso, e foi pelo olhar que criamos certa empatia. Eu reclamava como se ele fosse obrigado a ouvir. Em seu silêncio ele me respondia para ter paciência, dava para sentir isto. Quando eu fazia os agradecimentos finais e virava as costas ouvi algo que surpreendeu, nunca poderia imaginar. Lembro das palavras “eu tenho uma carriola ali se cê quisé”. Achei absurdo, no entanto foi a coisa mais “concreta” para o momento. Pedi para ver. Não poderia carregar comida em qualquer lugar por questões de higiene, deixei claro que não estava menosprezando a oferta. O velho entrou e voltou carregando uma carriola semi nova brilhando a respingos de cimento, relativamente limpa.
Aceitei a oferta. Coloquei os isopores e segui em passos firmes carregando a mercadoria. Esbravejei, xinguei mais, reclamei e continuei com a empreitada. No fundo achava a situação cômica. Por fim, cheguei à fábrica. Na portaria ficava um vigia rodeado de cachorros vira-latas, ele me viu sem acreditar. Caminhei até um galpão com abertura lateral, era lá que eu despachava a entrega. Quando estacionei a carriola o olhar do vigia foi multiplicado em sei lá quantas feições diferentes. Um relógio grande de ponteiros afixado na parede marcava 12h05. Reconheço que atrasei, foi por pouco. Quando voltei ofereci uns trocados como retribuição, o velho não quis. Consegui encontrar um orelhão para pedir socorro e durante mais de uma hora esperei.
Tempo suficiente para conhecer toda a família do senhor. Eu não aceitei um café por achar que abusaria da hospitalidade. Eita ideia porreta que ele teve!
De ontem para a história são dias que eu nunca esqueço.
*Marcelo Cajui é graduado em Publicidade
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