POR HELENA NOVAIS*
O recente lançamento de Zodíaco nos cinemas brasileiros me fez rever um antigo interesse, a psicopatia. O tema é bastante intrigante principalmente por jogar alguma luz sobre a relação humana com a realidade, sobre como se compreende o mundo e se reage a ele, por qual processo o indivíduo se torna o que é. A grosso modo, a psicopatia representa um erro no processo de formação da personalidade, que tanto tem causas biológicas, quanto cognitivas de ordem sócio-ambiental.
Ao contrário do que diz o agente do FBI, Will Grahan, para Hannibal Lecter (em Dragão Vermelho), um psicopata não é um louco. “Sob o ponto de vista intelectual, os psicopatas são como as pessoas normais: não têm qualquer prejuízo de sua capacidade de discernimento”. A psicopatia é uma das variantes do conjunto de anomalias que se convencionou chamar de “distúrbios da personalidade”. Um louco não articula pensamento de forma lógica e com a maestria dos psicopatas. Já estes não são deficientes mentais ou tampouco sofrem de “alucinações ou problemas de identidade, como ocorre com vítimas de esquizofrenia”, pelo contrário, freqüentemente são indivíduos com inteligência acima da média que podem, ainda, serem simpáticos e sedutores e usam “essas qualidades para mentir e enganar os outros”. A grande tragédia é que “embora no plano intelectual entenda perfeitamente a diferença entre o certo e o errado, o psicopata não é dotado de emoções morais: não tem arrependimentos, culpa, piedade nem vergonha. É incapaz de nutrir qualquer empatia pelo próximo”. Sintetizando, o psicopata é biologicamente e psicologicamente incapaz de julgamentos morais.
O cinema está repleto de personagens nesta linha que conquistam a atenção do público e muitas vezes até uma ponta disfarçada de admiração, pois a inteligências que eles demonstram, embora usada de formas abomináveis, demonstra um senso de objetivos e de planejamento muitas vezes superior à capacidade demonstrada pelas pessoas comuns. Isso se faz notar também em Zodíaco, o mais recente longa do diretor David Fincher (também realizador de Seven, os Sete Crimes Capitais).
O filme retrata o caso de um assassino que aterrorizou a cidade de São Francisco em 1968. Além de destruir a vida de suas vítimas e de suas famílias, o criminoso exerceu influência decisiva também na vida de investigadores que trabalharam no caso, pois ao enviar aos jornais cartas escritas em código, com ameaças e detalhes sobre suas vítimas, o assassino Zodíaco despertou obsessões vãs que se prolongaram por décadas. Reconhecidamente, psicopatas tendem a fazer jogos psicológicos altamente prejudiciais para quem os cercam. “Eles manipulam e agem de tal modo que o erro que seria deles é imputado a outra pessoa, que acaba acreditando realmente ser fracassada, relapsa, sem potencial. (...) É comum que o psicopata desequilibre todos a sua volta, a ponto de desenvolver nas pessoas medo, pânico e fobias de todo tipo. Ele nunca se trata, mas quem está à sua volta invariavelmente acaba deprimido e tendo de procurar ajuda médica e medicamentos que controlem seu sistema nervoso”. O jogo que Zodíaco decidiu jogar foi bem sutil, além de letal, e o levou a sair ileso e permanecer oculto até os dias atuais, tal como aconteceu com Jack, o estripador que aterrorizou Londres em 1888. As investigações do caso de Jack chegaram a apontar cerca de 200 suspeito sem que nunca se definisse o verdadeiro criminoso.
Por outro lado, um dos maiores escritores de todos os tempos, Edgar Alan Poe é mestre em contos fundamentados em estados mentais doentios. Em O Coração Denunciador ele descreve o tormento do próprio psicopata que trama o assassinato daquele que o incomoda. “É impossível dizer como a idéia me penetrou primeiro no cérebro. Uma vez concebida, porém, ela me perseguiu dia e noite. Não havia motivo. Não havia cólera. Eu gostava do velho. Ele nunca me fizera mal. (...) Um de seus olhos se parecia com o de um abutre... um olho de cor azul-pálido, que sofria de catarata. Meu sangue se enregelava sempre que ele caía sobre mim; e, assim, pouco a pouco, bem lentamente, fui-me decidindo a tirar a vida do velho e assim liberta-me daquele olho para sempre. (...) O zumbido tornou-se ainda mais distinto; continuou e tornou-se ainda mais perceptível. (...) Era um som grave, monótono, rápido... muito semelhante a de um relógio envolto em algodão”. O olho é um símbolo que ativa o inconsciente do psicopata e exige dele reações. Já tendo cometido o assassinato, o psicopata é visitado por policiais quando, por força das próprias reações incontroláveis, acaba por denunciar-se. “Levantei-me e fiz perguntas a respeito de ninharias, num tom bastante elevado e com violenta gesticulação, mas o som constantemente aumentava. Por que não se iam eles embora? Andava pelo quarto acima e abaixo, com largas e pesadas passadas, como se excitado até a fúria pela vigilância dos homens; mas o som aumentava constantemente. Oh, Deus! Que poderia eu fazer? Espumei... enraiveci-me... praguejei! Fiz girar a cadeira sobre a qual estivera sentado, arrastei-a sobre as tábuas, mas o barulho se elevava acima de tudo e continuamente aumentava. Tornou-se mais alto... mais alto... mais alto! (...) Outra coisa qualquer, porém era melhor do que aquela agonia! Qualquer coisa era mais tolerável do que aquela irrisão! Não podia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Sentia que devia gritar ou morrer, e agora... de novo... escutai.... mais alto... mais alto... mais alto!... – Vilões! – trovejei. – Não finjam mais! Confesso o crime! Arranquem as pranchas! Aqui, aqui! Ouçam o batido do seu horrendo coração!” (POE, 1981, p. 136, 140-141). O som da batida do coração que só ele ouve e que o faz matar... A psicopatia não é um tormento apenas para a sociedade.
Obra recente, que também tenta descrever as reações de um psicopata é A Cela, com Jennifer Lopes. Neste filme, por meio de efeitos especiais e imagens com tons surrealistas, que lembram muito os quadros de Salvador Dali, se procura apresentar uma visão do que seria o inconsciente de um psicopata. Pesquisas psiquiátricas de base neurológica indicam que “em comparação com uma pessoa normal, o psicopata apresenta menor atividade cerebral em uma série de áreas envolvidas no julgamento moral. As causas dessas diferenças, porém, ainda são desconhecidas. Supõe-se que um componente genético esteja envolvido. Quanto aos componentes sociais que determinam o surgimento da psicopatia, os cientistas consideram que a ocorrência de abuso infantil, por exemplo, pode ter influência no distúrbio. ‘Seja na forma de espancamento, seja na de estupro, o abuso é um fator de risco para a psicopatia, embora, por si só, não possa causá-la’”. A Cela faz menção às violências sofridas pelo personagem Carl Stargher quando criança, como muitas vezes acontece em filmes do gênero.
A doença é uma tragédia humana e social. Pesquisas indicam que a maioria ou praticamente a totalidade dos psicopatas que se tornam serial killers são adultos que sofreram abusos quando criança, no período em que estavam assimilando informações, em que suas personalidades estavam em formação. Isso faz lembrar as conclusões dos pesquisadores Jean Piaget e L.S. Vygotsky. Ambos ensinam que a personalidade humana se forma em contato com o meio social. Ao nascer, o ser humano é uma matriz biológica, sobre a qual serão registradas informações do universo sócio-ambiental em que ela está inserida. A pequena mente recém-nascida passa a processar informações, sensações, usos, costumes, valores. O organismo biológico precisa sobreviver e encontrar um espaço seguro em um mundo estranho, encontrando maus tratos, violência e desamor a mente reage assimilando códigos que interagem no inconsciente e geram uma personalidade anti-social, caso haja tendências biológicas para tanto.
O cinema tem retratado muito bem os casos de psicopatas que se tornam serial killers e conta com uma galeria de personagens memoráveis, invariavelmente bem interpretados e capazes de manter o público em suspenso ao longo de cerca de duas horas, como Norman Bates (Anthony Perkins e depois Vince Vaughn no remaker de Psicose), John Ryder (Rutger Rauer em A Morte Pede Carona), Hannibal Lecter (Anthony Hopkins em O Silêncio dos Inocentes, Dragão Vermelho e Hannibal), Francis Dolarhyde (Ralph Fiennes em Dragão Vermelho), John Doe (Ken Spacey em Seven, Os Sete Crimes Capitais), Carl Stargher (Vincent D'Onofrio em A Cela), Jack (Johnny Depp em Do Inferno), Hayley Stack (Ellen Page em Menina Má.Com), entre outros que surgiram ao longo da história da sétima arte. São filmes onde o suspense e tensão envolvem totalmente quem os assiste. O efeito final também é sempre o mesmo, o sentimento de atordoamento, de confusão, de fatalidade, de impotência, a repulsa, a admiração e até a simpatia e pena pelo psicopata. De todos, Psicose de Alfred Hitchcock é um clássico e Seven de David Fincher talvez seja a mais perfeita tradução do gênero, com um clima imbatível e um final inigualável.
Quem não se lembra do estado do investigador David Mills (Brad Pitt) nas cenas finais de Seven, o homem que enfrenta a mente gelada do psicopata John Doe, perde tudo e se torna um farrapo humano? Ou do medo de Will Grahan (Edward Norton em Dragão Vermelho) que quase perde a vida nas mãos de Hannibal Lecter e coloca a própria família à mercê de Francis Dolarhyde? Mas como não sentir pena de Carl Stargher, o psicopata de “A Cela”, ou mesmo de Francis Dolarhyde? Eles tentam ser mais fortes do que seu mal, mas não conseguem. Em Dragão Vermelho se vê Francis lutando contra seu dragão interior, ele se rebela contra a doença ao ser sensibilizado por Reba McClane (Emily Watson). A condição de cega da personagem permite a ela abrir uma janela de comunicação com Francis e ela desperta algo nele que ainda é sensível. Ele consegue gostar dela sinceramente e seu gostar a salva. Mas ele sabe que não conseguirá ter controle permanente sobre seus atos e a afasta de si para protegê-la. Em “A Cela” se vê Stargher em sua briga inconsciente, ele tenta resistir a seus fantasmas interiores, mas sucumbe a um inconsciente que o devora.
A psicopatia não tem cura e, de certa forma, é responsabilidade de toda a humanidade. Por isso Hannibal Lecter é condenado a cinco prisões perpétuas, mas não à execução. Mantê-lo vivo, além de oportunidade de estudo, também é uma expiação por uma culpa que é ancestral, afinal o psicopata é resultado de uma herança genética e cultural que se desenvolve no interior da civilização. O mal é sutil e pode se fazer presente de muitas formas. Filósofos que estudaram a mente de oficiais nazistas após a Segunda Guerra Mundial concluíram que o mal é nada mais nada menos do que a ausência do bem, a incapacidade de sentir empatia pelo sofrimento alheio. Por aí, a psicopatia é a concretização de tudo o que pode existir de mais pérfido e insensível na alma humana.
*Helena Novais é graduada em Filosofia
Do blog: <http://the-mirror-conspiracy.blogspot.com/>
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