sábado, outubro 01, 2011

Finitude da vida, filosofia e o viver no “Sobre a brevidade da vida” de Sêneca

Por Rodrigo Tumolo*
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Pretendo apresentar nesta exposição a obra “Sobre a brevidade da vida” do filósofo estoico Sêneca: explorar a partir dela o tema da finitude da vida, o que essas reflexões podem ajudar no viver e qual a relação da filosofia implicada nisso. Ao mesmo tempo, espero fazer uma defesa de Sêneca como filósofo, afastando sua má-interpretação como escritor de “autoajuda”.

Primeiramente, creio ser oportuno começar respondendo à pergunta: quem foi Sêneca. Lúcio Aneu Sêneca foi não só um importante filósofo romano como também foi um rico escritor de tragédias e influente político no Império Romano. Sêneca não é romano de sangue e sim um espanhol da região de Córdoba que tinha a cidadania romana, pois seu pai era um cavaleiro muito rico da região e simpático ao Império Romano. Desde muito jovem tomou contato com a filosofia a ponto de ser convertido a ela: seu pai, ao matriculá-lo com os melhores oradores de Roma, esperava formar um retórico para uma brilhante carreira política, mas Sêneca saiu-se um filósofo. É preciso explicar que Roma ocupava o lugar que Atenas ocupara séculos antes: de centro cultural e político do mundo, palco dos grandes debates e para onde convergiam os sábios da época — sábios que, em sua maioria, falavam grego! De fato, Roma foi a grande difusora do helenismo na Antiguidade: toda pessoa de origem nobre falava não apenas o latim, mas sabia expressar-se fluentemente em grego. Sêneca teve aulas com Atalo, um mestre grego estoico que o converteu para a filosofia.

Ora, já duas vezes usei o termo “conversão” para me referir à filosofia e não foi
à toa: Paul Veyne, em seu livro “Séneca y el estoicismo”, segue na direção que as filosofias antigas eram como seitas. Acompanhando sua exposição, os filósofos em Roma formavam uma espécie de “clero laico” e, diante da permissão pública de adoração dos imperadores mortos e a autoproclamação de Calígula como deus, não é difícil concluir que os filósofos formavam a oposição dentro do Senado.

O grande “porém” do Sobre a brevidade da vida reside em sua interpretação,
visto que lê-lo sem o conhecimento prévio da escola o torna quase um livro de autoajuda para romanos, com densidade rasa e que chega até nossas mãos com alguns séculos de atraso. Ao contrário, lê-lo a partir da perspectiva da escola revela toda a riqueza da filosofia posta em prática — e a prática, para Sêneca, é o que importa: a filosofia só faz sentido se aplicada imediatamente na moral, no aperfeiçoamento do homem, na sua busca pela felicidade. Acredito que algumas palavras sobre o estoicismo em seu caráter doutrinário serão mais úteis para compreender o livro de Sêneca do que me dedicar a trazer vários trechos e fazer uma breve análise deles: é um texto curto e cuja leitura flui agradavelmente.

O estoicismo romano é diferente em alguns aspectos do estoicismo grego original, propiciado pelo distanciamento temporal: a escola teve cinco séculos de existência desde seu surgimento na Grécia, com Zenão, e seu arrefecimento em Roma, com Marco Aurélio. Com os romanos, o estoicismo adquire um caráter aconselhativo. A parte teórica (chamada dógmata) para de ser desenvolvida e os textos que surgem são a pura aplicação da doutrina em formato de conselhos. O Sobre a brevidade da vida é exatamente assim. Trata-se de uma carta escrita a Paulinos, genro de Sêneca e então prefeito de Roma responsável pelo abastecimento alimentício da cidade, na qual Sêneca o exorta a deixar a vida pública e a dedicar-se à Filosofia. O gênero epistolar tem a vantagem da intimidade com o leitor: cria uma esfera acolhedora e singular entre o autor da carta e o destinatário, uma conversa entre iguais que facilita a aceitação do ser aconselhado. Sêneca, em especial, parece lançar-se em um diálogo virtual, pois se esforça de antemão em responder as questões que naturalmente seriam aventadas no diálogo presencial. Não somente isso, uma parte da riqueza do estilo de Sêneca está em usar uma série de exemplos cotidianos à época do Império, o que aproximava
sobremaneira o leitor romano de seu texto.

Falar dos estoicos é lembrar da máxima “viver de acordo com a natureza” (katà
physin
): aí está o caminho para garantir a verdadeira felicidade (eudaimonia). A pergunta a se fazer é como se vive de acordo com a natureza (physis) dentro da cidade (pólis)? Difícil. Decorre dessa dificuldade o tripé que norteia a prática estoica: a disciplina intelectual, o controle físico e o treinamento mental a fim de impedir que se opte pelo caminho que não conduz à tranquilidade da alma (ataraxia) e, consequentemente, à verdadeira felicidade — é uma ascese (áskesis) que o estoicismo propõe. A professora Rachel Gazolla nos diz que, “ao modo arcaico, para a Stoá, o que a natureza determina é o que somos. E agimos como somos. Segui-la será, portanto, a suprema areté”. Mas qual seria a natureza do homem? A natureza do homem é ser racional (logikós). É a racionalidade, portanto, a ferramenta humana por excelência: neste ponto entra a epistemologia da escola, um conjunto teórico que visa ensinar um pensamento prático (phrónesis — palavra traduzida também por prudência, a ação pensada) para que a pessoa seja responsável por suas escolhas e viva segundo seus próprios princípios (autarkéia). Na verdade, há uma circularidade: se é feliz quando se vive conforme a natureza, a natureza humana é ser racional, usando a razão se é prudente nas deliberações e se escolhe dar assentimento àquilo que conduz verdadeiramente à tranquilidade da alma, o que culmina, por fim, na felicidade.

O pensamento prático (phrónesis) pode ser explicado racionalmente, pode,
consequentemente, ser ensinado. Devemos ter em mente que, no estoicismo, lógica, física e moral são uma continuidade. Constantemente as afecções dos sentidos (pathós) imprimem na alma representações (phantasíai) que são passíveis de compreensão racional (kathalépsis). Os homens comuns aceitam, ou melhor dizendo, dão assentimento (synkatáthesis) a qualquer representação e vivem assim ao sabor das paixões, escolhendo caminhos que parecem agradáveis e mais fáceis ou se entregando à dor e ao desespero. O filósofo não dá assentimento a qualquer representação, antes a analisa: é a epochê, a suspensão do juízo,que literalmente significa “pôr entre parênteses”. Se crer que a representação merece crédito, dá seu assentimento; caso contrário, nega-lhe o assentimento e evita o engodo. Uma prática bastante difícil, daí a rigidez em doutrinação mental e corporal — ascese, no grego áskesis, significa literalmente “exercício”.

A exortação à filosofia que Sêneca faz a Paulinus está de acordo com os
preceitos da escola. O argumento que usa para isso é o da finitude da vida: todos reclamam que a vida é breve, mas não percebem que gastam a maior parte do tempo com futilidades — o tempo, como bem mais precioso da vida, é desperdiçado.

"O fato é o seguinte: não recebemos uma vida breve, mas a fazemos,
nem somos dela carentes, mas esbanjadores." (I, 4)


"Brinca-se com a coisa mais preciosa de todas; contudo ela lhes escapa
sem que percebam, pois é um incorporal e algo que não salta aos olhos,
por isso é considerado muito desprezível" (VIII, 1)


As pessoas ocupadas não são dignas de inveja, mas de dó: não percebem o
quanto essa ocupação lhes rouba a maior parte da vida. Essas pessoas regulam suas vidas pelo compasso da vida do outro, deixam que outro (quer seja o outro pessoa, trabalho, honra, orgulho, ganância ou o que mais for) se torne senhor de seu tempo: a vida lhes escapa pelosdedos e, quando se dão conta, perderam momentos que não há como voltar atrás — pior: nada fizeram para si, mas tudo o que fizeram foi para outro ou para os olhos dos outros.

"É extremamente breve e agitada a vida dos que esquecem o passado,
negligenciam o presente e receiam o futuro; quando chegam ao termo
de suas existências, os pobres coitados compreendem tardiamente que
estiveram por longo tempo ocupados em nada fazer" (XVI, 1)


À maneira de Sócrates e da filosofia antiga, Sêneca diz que a vida é um
aprender a morrer:

“Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que tu talvez te
espantes, a vida toda é um aprender a morrer” (VII, 3-4)


A presença da morte nos faz lembrar da nossa pequenez e nossa fugacidade neste mundo: nos ajuda a reconhecer de fato o que é importante para nós daquilo que vem apenas roubar nosso tempo e isso não merece nosso assentimento. A morte não é para ser temida, pois faz parte da vida — só teme a morte aquele que sente não ter vivido e sabe que não há mais tempo. A vida não é breve: se a soubermos usar de maneira proveitosa e prudente, é mais que o suficiente para uma existência feliz.

"Mas para aquele cuja vida esteve livre de preocupações, por que não haveria ela de ser longa? Dela nada foi transferido a um outro, nada foi atirado a um e outro lado, nada foi dado à Fortuna, nada disperdiçado por negligência, nada foi esbanjado com prodigalidade, nada ficou sem ser empregado: toda ela, por assim dizer, teve proveito. E, deste modo, por mais curta que seja, ela é mais que suficiente; e portanto, quando lhe vier o último dia, o sábio não exitará em caminhar para a morte com passo firme." (XI, 2)

Como remediar esse mal? O conselho de Sêneca é acercar-se da filosofia e dos
sábios. Diz ele: "Nenhum destes forçará tua morte, todos te ensinarão a morrer, nenhum dissipará teus anos, mas te oferecerá os seus" (XV, 1) "Estes te darão o acesso à eternidade, te elevarão àquelas alturas de onde ninguém se precipita. Esta é a única maneira de prolongar a existência mortal e, até mais, de convertê-la em imortalidade" (XV, 4)

Espero ter despertado em vocês a vontade de ler Sêneca e ter afastado o
preconceito de “livro de autoajuda” com essas palavras introdutórias ao pensamento estoico.

*Rodrigo Tumolo é graduado em Filosofia

BIBLIOGRAFIA
ALBRECHT, Michael von. Cultura socrática en Séneca. Revista Myrtia. Múrcia: Universidad de Murcia, vol. 18, pp. 211-223, 2003.
FUHRER, Therese. Sêneca: sobre a discrepância entre o ideal e o imaginário. In: ERLER, M.
GRAESER, A. (Org.) Filósofos da Antiguidade: do helenismo à Antiguidade tardia. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2002.
SEIBT, Cezar Luís. Sêneca e a finitude da vida — o que a finitude pode nos ensinar sobre o viver. Revista Integração. São Paulo: Editora USJT, ano XV, nº 59, pp. 371-378, 2009.
SÊNECA. Sobre a brevidade da vida. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.
_______. Sobre a brevidade da vida. Porto Alegre: L&PM, 2010.
VEYNE, Paul. Séneca y el estoicismo. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1995

Um comentário:

Nelson disse...

Muito bom texto. Parabéns!