Por Nelson José de Camargo*
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No mês de junho nosso país foi sacudido por protestos. A causa inicial foi o reajuste das tarifas de transporte coletivo, mas logo surgiram outras bandeiras. A corrupção, a PEC 37, a “cura gay”, os gastos com a Copa. O povo, ou parcela importante dele, protestou contra “tudo o que aí está”.
Em um dos protestos pessoas com bandeiras de partidos políticos foram hostilizadas. Muitos dos manifestantes se posicionaram claramente contra todos os partidos. Ocorre que a forma de governo adotada no Brasil, e na maioria dos países ocidentais, é a chamada democracia representativa, que consiste na escolha de representantes do povo, por meio do voto, para ocupar os cargos públicos.
Rejeitar os partidos políticos é rejeitar essa forma de governo. Mas é possível colocar outra coisa no lugar?
Convém investigar um pouco a forma de governo que chamamos de democracia. É um produto na pólis grega, particularmente de Atenas, surgido no apogeu político e cultural desta cidade.
A democracia ateniense era direta, pois as decisões políticas eram tomadas pelos cidadãos, que se reuniam na Ágora para deliberar sobre as questões de interesse. No entanto, quem era considerado “cidadão” nesse sistema? indivíduos do sexo masculino, maiores de 21 anos, filhos de pai e mãe atenienses. Portanto, estavam excluídos mulheres e escravos, que constituíam a maior parte da população (80%, aproximadamente).
Pelos critérios de hoje, a democracia ateniense era um regime despótico e excludente. E não era apoiada por grandes pensadores da época, como Platão e Aristóteles.
A sociedade proposta por Platão em “A república” é claramente aristocrática, com as funções de governo cabendo às pessoas que seriam mais preparadas para tal, a aristocracia (na verdadeira acepção da palavra, “governo nos melhores”).
Para Aristóteles, o “homem é um animal político”, no sentido de que alguém só é humano se for capaz de viver em sociedade. “Quem vive só ou é uma fera ou um deus”, disse o filósofo.
Em sua obra “Política”, Aristóteles considera que as três principais formas de governo, a monarquia, a aristocracia e a democracia, podem ser justas. Mas todas as três podem assumir formas degeneradas, a saber, a tirania, a oligarquia e a demagogia ou anarquia. Para evitar esse risco, o governo ideal seria uma forma mista, que combinasse as melhores características da monarquia, aristocracia e democracia.
Para Aristóteles, o objetivo da política seria promover o bem comum e a felicidade. Maquiavel, já no século XVI, refutou essa tese. A política seria apenas o jogo de poder, as maneiras de conquistá-lo e mantê-lo. Daí vem a frase a ele atribuída, mas que não consta em nenhuma de suas obras: “os fins justificam os meios”.
Para Hobbes, o ser humano é em princípio mau e egoísta: “o homem é o lobo do homem”, e a vida no estado de natureza é curta, brutal e infeliz. Para garantir uma existência digna, é necessário que haja um contrato, pelo qual cada cidadão abre mão de parcela de sua liberdade e voluntariamente a cede ao soberano, que personifica o Estado, que garante a lei e a ordem.
Já para Rousseau, o homem nasce puro e bom, mas a sociedade o corrompe. O Estado surge para controlar essa “corrupção” causada pala cobiça, pelo desejo de acumular bens e propriedades.
Mas como se organiza um Estado democrático, que não seja o sistema absolutista proposto por Hobbes? Poderia ser a divisão do poder em executivo, legislativo e judiciário, que deveriam ser independentes e harmônicos, defendida por Montesquieu. Para esse pensador iluminista, seria uma forma de evitar governos autoritários e de garantir a justiça e a liberdade. Algo semelhante à monarquia parlamentar existente na Inglaterra naquela época, que já tinha muitos traços das atuais democracias representativas. No entanto, Rousseau criticava essa forma de governo: “O povo inglês pensa ser livre e engana-se. Não o é senão durante a eleição dos membros do Parlamento”.
Para o pensador genebrino, a vontade de cada membro da comunidade política, isto é, a soma de todas as vontades particulares, constitui a vontade geral. República, para Rousseau, é todo governo guiado pela vontade geral, que é a lei, independente da forma de administração (democracia, aristocracia, monarquia ou governos mistos). Nesse regime político, “somente o interesse público governa”. E as leis são atos da vontade geral. Ou seja, a soberania não atributo do soberano, como em Hobbes, mas do povo.
As ideias de Montesquieu, Rousseau e outros pensadores iluministas estimularam movimentos como a Independência dos Estados Unidos em 1776 e a Revolução Francesa em 1789. Foram eventos que serviram de modelos para as modernas democracias representativas.
No entanto, os protestos que têm ocorrido não só no Brasil, mas em várias outras nações, parecem ter colocado esse modelo em xeque: a democracia representativa é uma fórmula esgotada? O que colocar em seu lugar?
Em primeiro lugar, é preciso distinguir claramente os protestos. Os que fizeram parte da chamada “Primavera Árabe” ocorreram em países com governos autoritários. Em países europeus, os protestos foram motivados principalmente pela crise econômica que assola o continente, resultado de políticas de austeridade que procuram sobretudo resguardar os interesses do grande capital, sem considerar os sacrifícios impostos a maior parte da população. Essa “austeridade”, defendida principalmente pela Alemanha, principal potência econômica europeia, parece também estar se esgotando.
No Brasil, que tem situação econômica razoavelmente estável (apesar do ressurgimento da inflação e do baixo crescimento) e baixo desemprego, os protestos foram sobretudo motivados pela insatisfação com a classe política. O aumento das tarifas de transporte, propostas de emendas à Constituição e outras “reinvindicações” dos manifestantes foram apenas o gatilho para um movimento mais complexo, e que tem na realidade vários objetos, alguns nobres, outros nem tanto.
O grande problema da política brasileira é que não há em nosso país partidos políticos verdadeiramente ideológicos. Na verdade, todas as agremiações partidárias são muito parecidas, inclusive em seus métodos. Implantou-se no país, como consequência da Constituição de 1988, uma espécie de “presidencialismo de coalizão”, que favorece as mais sórdidas práticas de fisiologismo, como compra de apoio parlamentar, nomeações com base em critérios políticos e aparelhamento de instituições públicas.
Acuado pela voz das ruas, o governo federal propôs uma atabalhoada proposta de “reforma política”, que inicialmente seria uma espécie de “constituinte” e que já se transformou em plebiscito.
O problema, porém, é mais profundo. Uma reforma política séria envolve questões como maior rigor e controle sobre a atuação de partidos políticos; normas claras de financiamento de campanhas; definição do sistema de votação (proporcional, distrital, misto, lista partidária); maior transparência em relação às instituições políticas; fim do voto obrigatório (uma excrecência inaceitável de períodos autoritários); e mecanismos que permitam participação popular mais efetiva nas decisões, que não resvalem para o populismo.
Tentativas anteriores de negar a democracia representativa resultaram em regimes brutais e totalitários, como o nazismo alemão e o stalinismo soviético. Estas certamente não são alternativas. No entanto, os benefícios do Estado de Bem-Estar Social e as conquistas dos movimentos populares podem e devem ser levados em consideração.
Parafraseando Aristóteles, talvez a forma ideal de governo não seja a democracia representativa, mas uma forma mista, que incorpore mecanismos de participação popular e que tornem a atuação do Estado mais eficiente e justa.
Ou seja: a democracia representativa não fracassou, mas pode ser melhorada e até mesmo transformada. Depende da atuação consciente de todos.
*Nelson José de Camargo é graduado em jornalismo e filosofia
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