Por Nelson José de Camargo*
Nietzsche é certamente o filósofo mais popular e mais lido do mundo; seus livros são vendidos em bancas de jornal, em máquinas automáticas e até mesmo adaptados para histórias em quadrinhos; o Zaratustra inspirou o célebre poema sinfônico de Richard Strauss, trilha sonora do filme 2001, de Stanley Kubrick.
Mas a influência da filosofia de Nietzsche (e da filosofia de modo geral) nem sempre (ou quase nunca) foi positiva. O pensamento nietzschiano chegou a influenciar o regime político mais nefasto e abominável que já existiu no planeta: o nazismo.
Adolf Hitler era leitor de Nietzsche: na biblioteca particular do ditador, havia vários livros do pensador alemão, com muitas anotações nas margens das páginas. A mais frequente era “nicht verstanden” (não entendi).
Hitler era um homem de pouco estudo e pouca cultura, que tentou ser pintor acadêmico antes de começar sua carreira política. Seu livro Mein Kampf (Minha luta), é escrito em um alemão tosco, que demonstra claramente a deficiente formação cultural do líder nazista.
No entanto, Martin Heidegger, um dos grandes filósofos do século XX, aderiu publicamente ao nazismo e chegou a fazer discursos elogiando esse regime.
O “protonazismo” de Nietzsche é uma questão altamente controversa. Em Além do bem e do mal, o filósofo escreve que “os judeus são a raça mais autêntica e vigorosa da Europa”, e no mesmo livro afirma que eles são um povo “nascido para a escravidão [...] e com ele todo o mundo antigo, o ‘povo eleito entre as nações’ [...] os judeus realizaram esse milagre da inversão de valores, graças ao qual a vida na terra adquiriu um novo e perigoso atrativo”.
É fato amplamente conhecido que Nietzsche era crítico feroz da democracia representativa ocidental, que para ele era apenas reflexo da “moral de animal de rebanho”[1].
O conceito do super-homem nietzschiano também deu margem a atitudes racistas e eugenistas. Frases como “Os fracos e os fracassados devem desaparecer: primeira frase de nosso amor à humanidade”, ou “O que é mais prejudicial do que qualquer vício? A compaixão com todos os fracos e fracassados – o cristianismo”[2] podem facilmente servir de “combustível” para ideologias totalitárias.
Há ainda o problema sério das “interpretações” da obra de Nietzsche. Elizabeth Foster-Nietzsche, irmã do pensador, era assumidamente antissemita, e chegou a fundar uma colônia alemã no Paraguai, com o marido, onde ideias racistas e antissemitas foram difundidas.
Não podemos esquecer a compilação Der Wille zur Macht (Vontade de potência), organizada pela irmã de Nietzsche a partir de fragmentos deixados pelo filósofo para “construir” a ideologia protonazista.
O fato é que a obra de Nietzsche pode ser usada para os mais diversos fins – pois o que afirmado em determinada passagem é contestado alguns aforismos adiante. É perfeitamente possível construir uma ideologia fascista baseada em princípios nietzschianos, ou rejeitá-la inteiramente com base nos mesmos princípios. Esta é a consequência inevitável do caráter irregular e fragmentário da obra do filósofo.
Platão fracassou no seu objetivo de “fazer dos reis filósofos e dos filósofos reis”; Aristóteles foi preceptor de Alexandre, o Grande, mas não conseguiu incutir seus princípios políticos no conquistador macedônio; Descartes fez parte da corte da rainha Cristina, mas não transformou o reino sueco em modelo de democracia para o mundo. E Nietzsche, embora tenha sido um crítico implacável dos valores da cultura judaico-cristã ocidental, não foi capaz de propor um modelo alternativo.
Podemos concluir que a influência da filosofia na política foi predominantemente nefasta – pois influenciou alguns dos regimes mais autoritários do mundo.
No entanto, somente a reflexão filosófica pode fazer a humanidade refletir sobre seu papel no mundo.
A conclusão inevitável é que o nazismo (assim como outros regimes totalitários) foi influenciado não por Nietzsche, mas pelos nietzschianos – e este é o problema da filosofia. O perigo não está nos textos filosóficos, mas em seus “comentadores”, ou deturpadores.
*Nelson José de Camargo é Bacharel em Filosofia e Jornalista
[1] Além do bem e do mal, aforismo 202.
[2] O anticristo, aforismo 2.
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