sábado, junho 04, 2011

A dialética hegeliana

Por Nelson José de Camargo*

O pensamento hegeliano teve suas origens no idealismo alemão. Hegel foi contemporâneo de dois dos principais pensadores dessa corrente: Fichte e Schelling (de quem foi colega no Seminário de Tübingen). Nesse contexto, também teve grande destaque a filosofia de Kant, cuja influência sobre a filosofia alemã (e em toda a filosofia) foi imensa.

Mas há um importante diferencial no pensamento de Hegel em relação a seus antecessores: a dialética, que será o centro de sua filosofia.

Na Crítica da razão pura, Kant estabelece uma divisão entre “fenômeno” e “coisa em si”. Para Kant, não podemos ter conhecimento sobre o mundo real (as “coisas em si”), mas apenas das representações deste mundo, formadas na mente a partir das percepções de nossos sentidos. Conhecemos, portanto, os fenômenos, por meio da experiência. No entanto, há conhecimentos, universais e necessários, que não são adquiridos pela experiência, sem os quais nenhuma forma de conhecimento seria possível: são os juízos sintéticos a priori. Logo, há um limite bem definido entre o que podemos e não podemos conhecer.

Se Hegel por um lado reconhece que Kant “colocou a dialética em seu nível mais alto” uma vez que atribui a ele a “redescoberta da tríade dialética”[1], por outro lado não aceita esse limite. A crítica kantiana não foi capaz de perceber a identidade entre sujeito e objeto e, portanto de progredir rumo ao Absoluto, síntese final da tríade dialética em si (sujeito), para si (objeto) em si-para si (objeto, tal como conhecido pelo sujeito, e sujeito, que reconhece a si mesmo ao reconhecer o objeto).

Fenômeno e coisa em si não seriam mais que “representações de um Absoluto separado do conhecimento ou de um conhecimento separado do Absoluto”[2]. Em Kant, as determinações permanecem essencialmente subjetivas, “presas ao objeto”[3]. Ocorre uma “cisão” entre sujeito e objeto. A tarefa da filosofia seria superar essa cisão. Para tanto, era “elevar as determinações de pensamento acima desse ponto de vista medroso”[4].Na filosofia kantiana, “a razão fica restrita a reconhecer somente a verdade subjetiva, apenas o fenômeno”[5]. A filosofia crítica “afastou da coisa as formas do pensamento objetivo, mas as deixou no sujeito tal com as encontrou”[6].

Na Fenomenologia do espírito, Hegel rejeita a hipótese de um ponto de partida prévio para o saber. O fato de haver uma “linha de fronteira” entre o conhecimento e o Absoluto é um contrassenso. Uma consciência que “examina a si mesma”, que é “consciência do objeto” e “consciência de si mesma”[7] prescinde dos “juízos sintéticos a priori” ou de “fenômeno e coisa em si”. Uma teoria do conhecimento que separa o sujeito do objeto não se sustenta.

Hegel buscou a unificação entre sujeito e objeto, entre particular e universal. Superar essas aparentes contradições é na verdade “elevar” (aufheben) a razão além das “limitações do entendimento”.

O mundo real e o pensamento se identificam. O mundo é mundo porque é “pensado pelo pensamento, e o pensamento o é enquanto pensa o mundo”. Logo, o pensamento é subjetivo e objetivo ao mesmo tempo, não existe individualmente no sujeito, mas é objetivo e abstrato. “O pensamento livre e verdadeiro é em si concreto, e assim é ideia, e em sua universalidade total é a ideia ou o Absoluto”[8].

Aqui aparece a dialética: cada coisa traz em si mesma sua contradição, e dessa contradição surge um terceiro elemento, que ao mesmo tempo nega e afirma o primeiro, elevando-o: tese, antítese e síntese, ou afirmação, negação e negação da negação. A síntese, por sua vez, traz em si mesma uma nova negação, que conduz a uma nova síntese. E assim o movimento dialético (dialektische Bewegung) prossegue indefinidamente, rumo ao puro pensamento, a Ideia Absoluta, ou Absoluto.

A negação é, portanto, a essência da universalidade, pois conduz à síntese dialética. Assim, “o negativo é igualmente positivo”, na medida em que a “negação não é toda negação, e sim negação da questão determinada que se dissolve, com o que é negação determinada”[9].

A filosofia, para Hegel, reflete esse movimento dialético. Cada sistema filosófico surge em razão das contradições do sistema anterior, que traz em si mesmo sua dissolução. Tal dissolução, porém, não elimina o sistema anterior, mas o reafirma, de modo mais amplo e elevado. A filosofia, que tem como ponto de partida a experiência, encontra em si mesma, pelo pensamento puro, a “essência universal dos fenômenos”.

Nesse percurso, pode-se constatar o caráter eminentemente histórico da filosofia (ou das filosofias). As filosofias refletem o momento em que se encontra o movimento dialético. São momentos em que se pode constatar o grau de elevação do espírito rumo ao Absoluto. Trata-se, portanto, de um desenvolvimento: “quanto mais este desenvolvimento progrediu, tanto mais perfeita é a filosofia”, diz Hegel[10].

A história da filosofia, portanto, não se resume a comparar diferentes sistemas filosóficos, ou a refutar ou apoiar ideias deste ou aquele filósofo, mas compreender esse desenvolvimento, esse percurso.

Sujeito e objeto, na perspectiva dialética, caminham em direção à Ideia Absoluta. A mente, ao pensar o mundo exterior, coloca-se para fora de si, “nega-se”, mas ao mesmo tempo reconhece a si própria no mundo exterior, no outro. Essa alteridade é a autoafirmação do pensamento, o pensamento que pensa a si próprio em todas as coisas, a verdade única e universal que Hegel chamará de Ideia Absoluta. Assim é o conceito hegeliano de Deus, o absoluto sujeito-objeto, o infinito absoluto, em que todas as teses e antíteses estão superadas. O espírito absoluto, tal como é em si mesmo, antes de se exteriorizar como Natureza, como espírito finito, a ideia em si.

O primeiro momento desse movimento dialético é, portanto, a ideia em si mesma. É o espírito humano em sua subjetividade. No segundo momento, esse espírito torna-se objetivo, se manifesta, se exterioriza, sai de si mesmo; por fim, retorna ao espírito, não apenas como em si (primeiro momento), mas como em-si-para si. Ocorre a fusão entre subjetivo e objetivo, que resulta em algo que é ao mesmo tempo subjetivo e objetivo, que ao mesmo tempo nega e reafirma os elementos anteriores. Nesse retorno, o espírito, revelando-se a si próprio, se eleva, e caminha para um estágio cada vez maior de liberdade.

A história humana é, portanto, um crescimento progressivo do Espírito. A dialética do senhor e do escravo (que traz em si mesma a dissolução da escravidão) é um exemplo desse movimento. Todas as civilizações humanas representam, desse modo, “momentos” do movimento do espírito.

Para Hegel, um objeto só o é na medida em que é para a consciência. E assim ocorre com todo o Universo. Tudo é, na medida em que é para a consciência, em si-para si. Há, portanto, uma unidade entre ser e conhecer.

Para Hegel, o espírito humano caminha em busca da plena liberdade e da infinitude, por meio da arte, da religião e da filosofia, que são desdobramentos do espírito absoluto, isto é, formas pelas quais o Absoluto se exterioriza, se manifesta.

Se na Fenomenologia Hegel expõe “a consciência em seu movimento progressivo, desde a oposição primeira e imediata dela e do objeto até o saber absoluto”[11], na Ciência da lógica trata da “ciência do puro pensar”, cujo objeto é a verdade.

A lógica é o “sistema da razão pura”, “reino do puro pensamento”, “verdade como ela é em si e para si mesma”, “a exposição de Deus tal como ele é, em sua essência eterna, antes da criação da natureza e de um espírito finito[12]. Não se trata da lógica no sentido aristotélico, que para Hegel é meramente formal, mas como “ciência do pensamento puro”, que tem como princípio o “saber puro”. A lógica é, portanto, “a ciência da ideia pura, ou seja, da ideia no elemento abstrato de pensar”[13].

Assim, a lógica pode ser dividida entre lógica do conceito como ser e como essência (lógica objetiva) e do conceito como conceito (subjetiva). A primeira ocuparia o lugar da metafísica, sobre a qual se edificaria o conhecimento do mundo; a lógica subjetiva, ou lógica do conceito, tem como objeto o próprio sujeito.

O percurso do saber humano culminará no saber absoluto, no qual já não há distinção entre objeto e certeza de si – “verdade da certeza e certeza da verdade” tornam-se idênticas. Estão superados, nesse estágio, os limites entre sujeito e objeto. O espírito torna-se infinito, ou Absoluto. É a consciência humana em sua forma mais elevada, o conhecimento do espírito pelo espírito, ou do Absoluto pelo Absoluto, o ponto culminante da dialética hegeliana.

*Nelson José de Camargo é Bacharel em Filosofia e Jornalista

[1] HEGEL, Fenomenologia do espírito, prefácio, p. 317. Nota.
[2] Ibid., Introdução, p. 333.
[3] Id. Ciência da lógica.
[4] Ibid.
[5] Ibid.
[6] Ibid.
[7] Op. cit., 334.
[8] Id. Enciclopédia das ciências filosóficas, p. 55.
[9] Op. cit.
[10] Introdução à história da filosofia, p. 400.
[11] Ibid.
[12] Ibid.
[13] Op. cit., p. 65.

Bibliografia

HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica (excertos). Tradução de Marco Aurélio Werle segundo a edição Suhrkampf 2010.

_________. Enciclopédia das ciências filosóficas. São Paulo, Edições Loyola, s/d.

_________. Fenomenologia do espírito. In: Os pensadores. São Paulo: nova Cultural, 1999.

­­­­­­_________. Introdução à história da filosofia. In: Os pensadores. São Paulo: nova Cultural, 1999.

Um comentário:

Igor Cavalli disse...

pohãn, entendi!