sábado, março 30, 2013

Estado laico e feriados religiosos: contradição a ser superada?

Por Nelson José de Camargo*
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O feriado da sexta-feira santa leva a uma reflexão filosófica: se o Brasil é um estado laico (isto é, há separação entre Estado e religião), por que a data é feriado nacional? Não deveria ser um dia normal de trabalho, como ocorre em muitos países?

Em primeiro lugar, para quem a data é feriado? Para os trabalhadores do mercado formal, que têm carteira assinada e demais direitos e benefícios trabalhistas, ou seja, pouco mais de 50% da população economicamente ativa. E mesmo entre os trabalhadores formais, há muitos que têm de trabalhar em feriados e fins de semana, em razão de demandas específicas suas funções.

E o que dizer dos trabalhadores “free-lancers”, ou que trabalham em regime de “home office”? Ou ainda dos autônomos? Ou dos trabalhadores de certos setores da indústria e do comércio, muitas vezes pessoas com pouca escolaridade, que são submetidas a longas jornadas de trabalho, baixa remuneração e, em alguns casos, a situações análogas à escravidão. Até mesmo grifes famosas que vendem roupas a preços elevados nos shopping centers recorrem a esse tipo de mão de obra, face perversa da precarização das relações de trabalho.

Feita a ressalva de que nem todos os trabalhadores podem desfrutar dos feriados religiosos, podemos voltar à indagação inicial: por que celebrá-los em um Estado laico?

Em um passado não tão distante, o Brasil foi um país de ampla maioria católica: até meados do século XX, mais de 90% dos brasileiros se declaravam adeptos dessa religião. Os cerca de 10% restantes dividiam-se entre evangélicos históricos, evangélicos pentecostais e neopentecostais, espíritas e adeptos de religiões afro-brasileiras. Os que se declaravam sem religião ou ateus representavam menos de 1% da população.

No entanto, o quadro hoje é bem diferente. Os autodeclarados católicos são pouco mais de 60% da população, e apenas uma pequena parcela deles frequenta regularmente a igreja. Os evangélicos de diferentes denominações já ultrapassam 20% da população. Parcelas minoritárias continuam adeptas do espiritismo e de religiões afro-brasileiras. O segmento dos sem religião, ateus e agnósticos cresceu significativamente, em termos percentuais muito mais que o dos evangélicos: são hoje 8% da população, segundo dados do IBGE.

A conclusão é que a sociedade brasileira de hoje é mais plural em relação a crenças religiosas. Logo, este seria mais um motivo para contestar a presença de feriados religiosos no calendário oficial, uma vez que essas celebrações são dirigidas para um número cada vez menor de pessoas.

Acontece que a questão não é tão simples assim. A religião, assim como as festas, os pratos típicos, as danças, as cantigas, a música popular, o carnaval e outras manifestações culturais faz parte da cultura do país. E as diferentes denominações religiosas inspiraram obras de arte extremamente refinadas. Basta lembrar as cantatas de Bach, os afrescos e esculturas de Michelangelo, as igrejas do Barroco Mineiro, isso sem falar nas obras literárias e na arte popular de inspiração religiosa.

Schiller disse que “a beleza está situada entre [...] razão e sensualidade. [...] Une pensamento e sentimento. Filosofia e poesia são ambas vibrações da alma em direção a Deus, uma libertação das amarras dos sentidos, uma purificação do homem, uma arte moral”.

Dissociando a citação de Schiller de qualquer conteúdo religioso, podemos interpretá-la como a valorização das grandes criações humanas, aquilo que realmente distingue nossa espécie, ou seja, produzir arte e cultura. Pois a vida voltada apenas para o trabalho é vazia, resume-se à mera acumulação de bens, valoriza apenas o ter e não o ser.

Abolir os feriados religiosos em nome de uma suposta laicidade do Estado apenas vai abrir caminho para mais exploração e desumanização das pessoas. Vai ao encontro dos interesses dos que sonham com a imposição do neoliberalismo em sua forma mais radical, um capitalismo selvagem voltado apenas para a acumulação de riqueza. Não é essa a sociedade que queremos.

Religiosos e ateus, crentes e descrentes, celebrem os feriados e sejam felizes!

*Nelson José de Camargo é graduado em jornalismo e filosofia


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