Por João Carlos Ruzza*
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Muito já se tentou no sentido de formular uma definição do que seria a filosofia ou, mais precisamente, o pensamento filosófico. O que parece permanecer após todas estas tentativas são algumas características que, se não o definem ao menos justificam a sua relevância para o conhecimento humano. Reflexão, crítica, formulação de novos conceitos para nos referirmos a fenômenos já existentes, relações antes ignoradas entre as coisas, desnaturalização de “lugares comuns” e, como efeito colateral desejável, o abandono da pretensão de que seria possível abarcar todo o conhecimento numa só visada e definitivamente.
Vilém Flusser[1] participa desta tradição de modo muito peculiar e de importância ainda a ser reconhecida. O pensamento Flusseriano dá a impressão de ser registrado no mesmo momento em que é concebido ou, mais radicalmente, parece confirmar aquilo que intuímos quando afirmamos que algumas coisas só se realizam no ato de serem verbalizadas. Trata-se de pensamento vivo debruçado sobre o devir das coisas e, portanto, em constante transformação. Pensamento experimental, complexo e de certo modo, dialógico no sentido que dá Morin[2] a este termo.
Exemplo representativo de tal pensamento pode ser encontrado em seu texto “Arte de retaguarda” (FLUSSER, 1972)[3]. Trata-se de uma análise fenomenológica do gesto artístico que parece ter como objetivo principal a “desmagicalização dos nossos conceitos em arte”. No entanto, como é comum em seu pensamento, o tema principal serve como base de lançamento para vôos bem maiores, subterfúgio para uma reflexão sempre mais ampla e que acaba sempre por ampliar-se ainda mais para temas recorrentes que lhe são caros.
Flusser demonstra ter consciência plena da dificuldade em relação ao tema abordado, pois sabe que a separação ali pretendida entre o “pensar” arte - papel da crítica - e o “fazer” arte - exercido pelo artista, fazem parte de instâncias humanas distintas - a primeira discursiva, linear e a segunda mágica, circular - e opostas, mas paradoxalmente, interpenetrantes e interferentes, portanto, não-excludentes. Assim, temos então abordagens diferentes, porém complementares, de um mesmo fenômeno: o pensamento mágico, imersivo, como ferramenta adequada ao artista, não o seria para a crítica, esta uma reflexão sobre algo, um “falar sobre”, o que pressupõe posição externa ao objeto criticado. Isto implicaria na não existência de arte ou crítica puras e apartadas, onde um campo não afetasse o outro. Destarte, extremos puramente críticos (reflexivos e engajados) ou puramente imersivos (mágicos e puramente formais) seriam abstrações distanciadas do real fazer humano.
O procedimento flusseriano, recorrente em tantos outros textos de sua produção, consiste então naquilo que pode ser considerado o cerne do que seria o “bom pensar” ou, como define o próprio autor em sua autobiografia, pensamento que pretende mais se colocar a prova do que exatamente provar algo (FLUSSER, 2007, p. 45). Sendo assim, é pensamento que não teme as aporias que inevitavelmente surgem em meio ao processo, pois sabe que o que realmente conta são as contribuições ao pensamento como um todo adquiridas nestes movimentos.
O autor nos leva a pensar que apenas uma abordagem próxima das coisas mesmas daria conta da apreensão crítica dos fenômenos, de modo que, adota como eixo teórico a fenomenologia e mais precisamente a redução eidética. Trata-se do procedimento de depuração, formulado pelo filosofo Edmund Husserl que consiste na supressão de todos os conceitos relacionados à “coisa” que se pretende conhecer para que se possa voltar a sua “coisidade”, que seria a sua condição pré-teórica e, só então após esta análise despreconceituosa, tratar de se chegar a sua definição essencial. Embora saiba de antemão dos limites humanos relacionados a tal procedimento[4], já que toda aproximação das coisas é, no sentido mais rigoroso do termo, pré-conceituosa, pois inevitavelmente nos dirigimos à experiência munidos de nossos próprios filtros ou como ele mesmo afirma “sempre implicamos algo sub-repticiamente sem sabê-lo, e sempre descobrimos, portanto, explicações ‘boas’ que passam a nos surpreender” (FLUSSER, 1972). Assim, tendemos a nos apegar às explicações, sem perceber que o que nestas nos agrada é justamente o fato de corroborarem nossas próprias opiniões. O próprio pensamento fenomenológico surge desta constatação e da tentativa de superar tal problema.
Flusser afirma que a busca de sentido (pensamento espacial, mágico) para o fenômeno artístico, embutida em perguntas como “para que arte?” é em si destituída de propósito, pois leva a própria arte a se conformar às respostas a tal pergunta, bem como à ideologia específica daquele que a formula. De modo que, a arte passaria a refletir e corroborar à própria crítica que a ela se dirigiu no sentido de compreendê-la, num círculo de retroalimentação que só se romperia concedendo-se “a palavra ao próprio fenômeno da arte”.
Ele dirige o seu pensamento para a dimensão da concretude humana, intrínseca à prática artística, pois se o sujeito aqui implicado é parte de um todo muito mais amplo do que implica sua vontade é, ao mesmo tempo, uma individualidade que inexoravelmente escolhe[5] e, neste caso, publica a sua escolha. De fato, o fenômeno artístico pode ser caracterizado como subjetividade objetivada e publicada, porém o importante aqui para o autor (e que foge a muitas análises críticas em relação ao fenômeno da criação artística) é que esta objetivação se realiza através de um corpo.
O autor entende que apenas a procura por descobrir como algo que posteriormente pudesse ser definido como arte manifesta-se em si próprio, poderia de fato lhe desvelar o fenômeno artístico de modo o mais imediato possível. Tarefa nada simples se pensarmos no imenso problema de se definir o que seria “fenômeno artístico” de maneira o menos contaminada pelos nossos filtros pessoais e se entendermos que “definições” são naturalmente universalizantes e, portanto, tendem a se apartar da singularidade das situações. No entanto, a visada fenomenológica realizada por Flusser busca justamente se aproximar do geral no que ele tem de concreto, quer dizer, mirando o corpo e, como veremos adiante, o gesto - sua manifestação concreta - ao contrário de mirar o simples conceito, o autor consegue, mesmo que parcialmente devido as limitações já apontadas, realizar o intento fenomenológico de voltar as coisas mesmas.
Partindo da própria auto-observação, Flusser percebe que pode se definir como alguém sempre em movimento, que este se manifesta individualmente em gestos e que pelo menos alguns destes são plenamente deliberados e, conseqüentemente, são gestos que articulam a sua liberdade. Estes, por sua vez podem ser gestos que se manifestam no ar, no vazio ou gestos que esbarram contra algo. Ambos publicam, isto é “me articulam, ao articularem minha liberdade” e podem mostrar ao outro quem sou, posso ser reconhecido nestes.
Ocorre, porém, com o gesto que “esbarra” que, ao esbarrar em algo o gesto é modificado e seu resultado pode ser descrito como “liberdade imperfeita” se visto como aquele que resulta do que quero menos a resistência oferecida ou “liberdade realizada” caso visto como o que resulta do que quero mais as adaptações impostas a minha vontade. A “obra” é então o resultado de meu ”trabalho”[6] que é gesto que esbarrou em “objeto”.
Este “gesto livre” que pressupõe escolha de meu objeto não implica, porém em movimento unidirecional, é antes gesto carregado de ambivalências. Em parte porque escolho o objeto que quero, mas o escolho para modificá-lo em meu fazer. Se estivesse de todo contente com tal objeto não me movimentaria no sentido de alterá-lo. Em parte porque ao escolher, de certo modo também sou escolhido por meu objeto, visto que este escolher partiu de referências e repertório próprio anteriores a esta escolha. Não se trata, portanto de “criação ’ex-nihilo’”[7] já que “informações novas são produzidas por síntese de informações disponíveis” (FLUSSER, 2011, P.72). Não é mergulho no nada que de lá nos trás algo, mas fruto de “diálogo” com a tradição anterior. Implica pois, de modo fundamental, em feedback entre o sujeito e o objeto escolhido, pois, à medida em que o homem “informa” (produz tal síntese) o objeto vai “sorvendo vivências nele que vai novamente utilizar para informar o objeto” (FLUSSER, 2011b, P.112). Tal feedback transformador seria para Flusser a essência da arte humana.
Pode se então afirmar que o fenômeno artístico é intrinsecamente ambivalente, pois se trata mesmo desta confusão entre o sujeito e o objeto, esta imersão que seria característica definidora de tal gesto. A ponto mesmo de se apagar da relação em questão a comum definição hierárquica entre o que transforma e o que é transformado. De modo a não mais se poder afirmar se sou ativo ou passivo, já que “sou possuído pela atividade e ativado passionalmente, faço a obra e sou feito por ela” (FLUSSER, 1972). O fenômeno me absorve e por ele sou absorvido ou “Faço a obra, sou feito pela obra, a obra se faz por mim, e obra e eu somos feitos por um poder que engloba a ambos” (FLUSSER, 1972).
Esta perda de si mesmo na obra, ao mesmo tempo sugere um encontro com outros. Outros “eus” insuspeitados, já que no fazer da obra acabo muitas vezes por surpreender a mim mesmo com resultados inesperados e, ao mesmo tempo, minha resposta a “eus” outros, infiltrados nas referências anteriores, legadas por aqueles que antes de mim também se envolveram em tal gesto, tranformando-o em gesto menos solitário. Resposta àqueles que “antes de mim, trabalharam objetos, isto é: por aqui passaram deixando atestado de sua passagem” (FLUSSER, 1972).
Podemos expandir o pensamento do autor e afirmar que o fenômeno artístico seria muito mais um “fazer algo de tal modo” do que apenas aqueles gestos e obras resultantes destes, que costumamos ver expostos em galerias e museus. O fazer artístico seria expresso em gesto feito a partir do meu centro mais íntimo, da onde surge a minha liberdade. Poderia ser chamado assim qualquer gesto que daí partisse e que em minha imersão eu me conhecesse e reconhecesse a mim e a outros. Neste sentido é que podemos expandir o termo “artista” de modo a abarcar manifestações outras ou em outros termos “Toda flecha é bela se for produto de ‘arte’, isto é publicação de experiência concreta” (FLUSSER, 2011, P.160).
Por fim, é preciso dizer que apesar de minha imersão no trabalho, da perda de mim mesmo em meu objeto, meu gesto é, em seu sentido mais básico, gesto político, por ser articulação de minha liberdade e implicar em publicação. Flusser leva este pensamento a sua radicalidade ao afirmar que tal gesto seria não só gesto político, mas de fato o único neste sentido eficiente, pois a publicação do privado é “o único gesto que, efetivamente implica em transformação da república, porque é o único que a informa” (FLUSSER, 2011, P.158). Desse modo, em essência toda “Arte” é engajada, visto que sua publicação sempre visa o outro a quem exponho meus gestos cristalizados no embate com o objeto.
Na visão de Flusser, toda informação é luta que se trava contra objeto, seja ele sólido (mármore, tinta) ou não (a línguagem, por exemplo). É luta que revela a estrutura resistente do objeto escolhido como “adversário” e o desvelamento de tal estrutura se torna vivências que modificam por sua vez o homem que as armazena, transmite a outros homens e com eles as permuta.
Assim a arte humana se trata menos de fabricar objetos ditos belos e muito mais de gesto em que o homem deixa sua marca impressa em objeto escolhido livremente com intuito de realizar-se nele e nele se imortalizar. Portanto a “arte de retaguarda”, protetora por definição, seria esta “máxima articulação da liberdade” em resposta ao inexoravelmente humano “desafio da solidão e morte“.
Como já dito, esta caracterização do fenômeno artístico visa, antes de tudo, a experimentação (método heurístico, como afirma Flusser) do pensamento e não pretende encontrar definição absoluta de tal fenômeno mais antes manter viva a atitude de espanto[8] diante das coisas. Atitude esta já apontada pelo autor como cerne do pensamento filosófico e mesmo de sentido para prosseguirmos empenhados em viver a vida, mesmo reconhecendo a impossibilidade de resolução absoluta e definitiva das questões a nos colocadas pelo próprio viver.
João Carlos Ruzza é Artista Visual, Bacharel em Filosofia e Mestrando em Comunicação e Semiótica pela PU-SP, vive em constante espanto e mergulhado na dúvida.
Notas:
1 Vilém Flusser, nascido em 1920, em Praga, na antiga Tchecoslováquia, de onde foge em 1939, forçado pela invasão nazista. Chega ao Brasil dois anos depois, após ter passado pela Inglaterra e, em 1950, naturaliza-se brasileiro. A partir de 1960, passa a lecionar filosofia em instituições como FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado), ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e USP Universidade de São Paulo) ao mesmo tempo em que escreve para os jornais O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo. Publica mais de trinta livros em português e outras línguas, além de centenas de artigos em revistas e jornais de todo o mundo. Em 1973, muda-se para a França; passa a publicar na Alemanha e a ser reconhecido como filósofo dos novos media. Sua obra Filosofia da Caixa Preta é editada primeiro em alemão e depois em português (encontra-se traduzida em mais de 15 línguas). Em 1991, volta a Praga e morre nesse mesmo ano (Extraído de BERNARDO, Gustavo in FLUSSER, 2007).
2 “Unidade complexa entre duas lógicas, entidades ou instâncias complementares, concorrentes e antagônicas que se alimentam uma da outra, se completam, mas também se opõem e combatem”.(MORIN, 2005, p. 300).
3 Texto publicado originalmente na revista Cavalo Azul, (7): 79-89, 1972, criada pela poetisa Dora Ferreira da Silva. A versão aqui utilizada foi extraída do site www.dubitoergosum.xpg.com.br.
4 Como nos esclarece o autor em FLUSSER, 2002, P. 95.
5 E neste sentido que Flusser, parafraseando J.P.Sartre, afirma em seu texto “sou condenado a ser livre” (SARTRE, 2012). Visto que, mesmo quando não achamos estar escolhendo ou até nos decretamos “sem escolha”, estamos, a rigor, escolhendo não escolher.
6 Importante notar que o autor nos chama a atenção para movimentos que também encontram objetos, mas que devido a sua natureza, não poderiam ser aqui chamados de “gestos” pois estes, não articulariam a nossa liberdade. Embora tal movimento também seja chamado de “trabalho” e responsável pela maioria dos produtos que nos cercam, são movimentos impostos por pressão exercida contra mim e contra o que seria a minha liberdade, posso chamá-los então de “servidão” ou “trabalho alienado”.
7 Do latim “Ex nihilo nihil fit”: A partir do nada, nada se faz. (Frase atribuída a Lucrécio, poeta e filósofo latino em sua obra De Rerum Natura, Liber II, 287). Fonte: http://pt.wikiquote.org
8 Para ampliação desta questão, fica aqui indicada a leitura de seu texto “Em louvor ao espanto” in FLUSSER, 2002, P.91.
Referências Bibliográficas:
FLUSSER, Vilém. Arte de retaguarda. In: CAVALO AZUL, (7): 79-89, 1972. (disponível: http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a597.htm)
_________.Bodenlos: uma autobiografia filosofica. São Paulo: Annablume, 2007.
_________.Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade. São Paulo: Escrituras, 2002.
_________. Pós-História. São Paulo: Annablume, 2011.
_________. Vampyrotruthis Infernalis. São Paulo: Annablume, 2011b.
MORIN, Edgar. O Método 6: Ética. Porto Alegre: Sulina, 2005.
SARTRE, Jean-Paul O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Vozes, 2012.
3 comentários:
Hailton, que texto bom! Acho bárbaro pensar na arte, e nesse processo de criação em que criamos, mas somos também criados. Nunca havia pensado nisso de forma mais elaborada, mas, a cada dia percebo mais esse processo quando estou escrevendo. Ultimamente tenho percebido muito claramente que mudo enquanto escrevo, porque escrever sobre algo que já elaborara em pensamento me faz mudar de ideia, de opinião, de posição... e a elaboração final fica diferente da elaboração mental inicial. É bárbaro isso. Bela postagem. :)
Muito bom seu texto. Definir o que é arte ou fazer artístico é uma das grandes questões da filosofia. Nem mesmo Kant conseguiu dar conta de forma plenamente satisfatória dessa tarefa. Como seria possível definir o gosto [artístico] como “a faculdade do juízo estético de escolher (ajuizar algo como belo ou não) de um modo universalmente válido", se até hoje não há consenso sobre o que seria "aceito universalmente como belo". A filosofia da arte não é, portanto, a investigação sobre o que é belo, mas sobre o que é arte, e esta é uma questão com muitas (ou nenhuma?) resposta.
Caro João,
Vi semelhanças em alguns aspectos do pensamento flusseriano com as ideias de Gadamer... Sobre tudo, e principalmente no que tange ao conceito de obra de arte sugerido por este último. Procede?
Belo texto. Parabéns!
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