sábado, agosto 18, 2012

Má Fé: A Fuga da Liberdade

Por João Carlos Ruzza*

Uma questão central, recorrente e que, de certo modo, permeia quase toda obra sartreana é sem dúvida o problema da liberdade X contingência. Se a mesma afirmação poderia também ser estendida a grande parte da filosofia como um todo, na obra de Sartre ela ganha caráter de fundamentação e também surge como foco de controvérsias, críticas e análises, as mais diversas.

O objetivo deste ensaio é, fechando ainda mais o foco sobre tal questão, abordar o conceito sartreano de “má-fé” e suas possíveis implicações em relação à concepção de liberdade na obra de Sartre sem, no entanto, a menor pretensão de esgotar o assunto e sempre levando em consideração o espaço relativo a este trabalho.

Sabemos da importância da frase “a existência precede a essência” para o existencialismo de Sartre. Seu exemplo do “corta papel” no texto “O existencialismo é um Humanismo”, de 1970, diferencia diametralmente nós, humanos, daquilo que seriam os objetos inanimados e criados a partir de projetos elaborados com objetivos específicos. Quer dizer, se em relação a um corta papel podemos apontar sem problemas a idéia e o intuito que o gerou, a nós humanos o mesmo não se aplicaria, não haveriam pré-projetos relacionados a nossa gênese como seres humanos. Seria, então, contrariar a idéia aristotélica de que o homem possui uma essência, que significaria que ele é pré-definido por uma lei absoluta, niversal e pré existencial, e que sua liberdade estaria restringida ao campo de possibilidades (potências) que esta essência lhe permitiria.

Assim, se à idéia de humano podemos, de algum modo aplicar a idéia de projeto, este seria um projeto aberto, não determinado, criado e direcionado por nós mesmos a partir de nosso agora, de um nada que seria a constituição inaugural daquilo a que chamamos de consciência.

Aqui está implicada a noção fundamental de Sartre no que se refere ao conceito de liberdade. Para o autor, esta não seria uma característica ou qualidade adicional da consciência mas, antes, uma definição ontológica da condição humana em si. Seriam então características constituintes de nossa consciência, estas escolhas realizadas sempre a partir de uma condição a todo tempo inicial ou mais claramente, a partir do nada que constitui o meu fundamento existencial.

Ora, se não há uma essência que me sirva de fundamento ou projeto inicial, posso dizer que minha “natureza” é esta que se constrói e reconstrói a cada escolha e que, portanto sempre parte deste nada.

Isto tudo implica na abertura quase total de possibilidades e escolhas mas, como bem sabemos, nem sempre nossas escolhas nos levaram onde originalmente pretendíamos. Na prática, nos interessamos por ter como livres nossas escolhas quando imaginamos que elas nos levarão a um resultado almejado. Considerando então o universo sem deus de Sartre, onde nossos atos e suas conseqü.ncias seriam pesados e assumidos por nós mesmos, esta abertura implica necessariamente em indeterminação e falta de justificação.

Para Sartre, cada escolha nossa seria como um desejo de nossa consciência de se tornar um “Ser”, obter uma identidade. Mas é da própria natureza da consciência ser um eterno vir-a-ser, um eterno projeto em
construção cuja referência é sempre um devir ou um constante fazer-se daí, inevitavelmente, a angústia de se estar sempre partindo do nada para algo. É como se minha consciência estivesse a todo instante tentando se afirmar através de uma impossibilidade, a de me afirmar como um ser em oposição a um fazerse.

De modo que, temos em nossa constituição subjetiva, uma consciência que é sempre consciência de algo. Caracterizada justamente por o ser, enquanto se encontra em relação a uma coisa, este algo. A própria natureza do objeto desta consciência é um fluxo que, para ser denominado, só o pode como um
processo, um vir-a-ser, um devir. O homem é sempre um ser em ato.

Correndo algum risco, faremos a comparação a uma foto, que tirada de um rio, nos revelasse um momento específico de seu fluxo pressupondo assim ter captado algo como uma essência a qual podemos denominar: “Rio X”. Esta necessidade, de captar a identidade, algo que surja como uma definição seria, grosso modo, a característica de nossa consciência.

Ocorre que, seguindo em nossa hipótese arriscada, se compararmos a foto do “Rio X” que temos agora em mãos, como o rio propriamente em sua concretude, teríamos uma aproximação que nunca empataria com o que de fato se apresenta. Quer dizer, a foto em nossas mãos, independentemente da eficácia de nosso equipamento, sempre representaria algo que já foi.

Numa outra manobra arriscada, voltamos a Sartre para afirmarmos que, nossa consciência insiste nestas fotos, enquanto o que temos é um fluxo ininterrupto e inapreensível do real. De modo que, minha consciência se constitui por esta necessidade de se definir como um todo fechado (em-si) e ao mesmo tempo a impossibilidade de tal empreitada pois, o que podemos produzir são apenas representações do “Rio X” em questão.

Sendo assim, quando escolho uma determinação para minha conduta, a vontade divina, por exemplo, estou no fundo escolhendo uma justificativa que me faça escapar de minha condição inexorável de Ser indeterminado. Estou fugindo da indeterminação inerente a minha própria condição de não ser um objeto como um corta papel (em-si), um ser determinado e sem consciência de si, mas sim, um ser humano (para-si), indeterminado e com consciência de si mesmo. Em última instância, estou tentando inutilmente fugir de minha condição primordial que é a de um ser inexoravelmente, nas palavras de Sartre, condenado à liberdade.

Fujo então da indefinição de um nada original para uma determinação. Fujo, ou imagino assim fugir, desta indeterminação que é minha condição de liberdade, em direção a algo determinado que eu possa identificar como um ser. 

É neste sentido que nos afirma Franklin Leopoldo:
Quando a consciência nega sua indeterminação original e procura se determinar em algo, um ser, poderíamos dizer que ela se nega para ser...É neste sentido que se poderia dizer que ela foge de seu
nada, para ser algo, mas como o nada é o seu ser, isso que ela vem a ser ao fugir para diferentes determinações não é o seu ser.
(LEOPOLDO E SILVA, 2004. p. 159)

É justamente a esta fuga, esta negação de minha condição original de ser indeterminado, que Sartre denomina como “má fé”. A fuga de meu nada de origem, fuga em direção a uma essência que jamais será plenamente alcançada.

Pois, enquanto ser-para-si, sou puro vazio ontológico, parto sempre do nada, de sua negação, em direção a algo que, quando “tomado” para si, já não o é mais, visto a condição de inexorável transformação a que tudo está submetido.

Enquanto ser humano sou um constante fazer-se a todo instante e o Ser que pareço ser a cada momento depende desse meu fazer. Esta troca do “ser” pelo “fazer” transforma, de certo modo, uma definição em um estado ou, de outro modo, “nenhuma conduta me define porque a liberdade é anterior a todas elas, o que significa que verdadeiramente nunca coincido com o que sou na imanência do presente”. Sendo assim: “Não sou corajoso ou covarde, mas faço-me tal; e ao tomar esse fazer-se como ser, posso então dizer que sou corajoso ou covarde, como a mesa é a mesa e a caneta é a caneta” (LEOPOLDO E SILVA, 2004. pág 163).

E é desse modo que podemos afirmar que a má-fé nos transforma em coisas, e nos coloca numa cadeia de causalidade próxima a de objetos, e não mais sujeitos, de nossas próprias existências. Nós, humanos, só poderíamos nos comparar a um “em-si” em relação ao nosso passado, pois, aquilo que fizemos anteriormente está, inexoravelmente, feito e quanto a isto, a rigor, nada podemos fazer. Mas em relação a este momento, o agora, de onde factualmente tomo as decisões que me levarão a conseqü.ncias futuras, sou sempre alguém decidindo a partir da concepção de liberdade delineada até aqui. Se meu agir vai de encontro a esta concepção, tentando me colocar como alguém prédeterminado e encontrando justificativas exteriores para o que me acontece a partir de minha consciência, estaria então, ocorrendo em má-fé.

É lógico que as escolhas e atitudes derivadas daí, realizadas em meu passado reverberam e tem conseqü.ncias em relação a minha situação presente.

Mas, acompanhando o pensamento sartreano, podemos em relação a isto dizer que, mesmo que não possa escolher a minha condição imediata, posso sim escolher, como agirei a partir dela. Se, por exemplo, devido a escolhas passadas fui obrigado a me tornar algo que me desagrada, um “caixa de banco”, não posso mudar meu passado e, nem mesmo, questionar se de fato fui mesmo obrigado a tal, pois, isto já está posto. Permanecer sendo algo com o qual não me identifico e me utilizando de desculpas para perpetuar tal situação (pago aluguel, tenho filhos, deus quis assim, etc.) estaria então ocorrendo em má-fé.

Por outro lado, oposto da má-fé, ou o que seria uma boa-fé (a autenticidade) seria a busca de entendimento e reconhecimento do que me trouxe até aqui e a partir daí agir de acordo com minhas escolhas reais, que caracterizariam meu projeto fundamental. Assumindo então a inevitável angústia própria de minha condição encarada como de fato ela é e a entendendo como resíduo intrínseco à prática e aceitação de minha condição de ser livre.

De modo que, a má-fé sartreana, diferente da má-fé tal como estamos acostumados a entender, não é uma atitude desonesta em relação a outrem, mas sim uma atitude de me auto enganar. Mesmo que apenas superficialmente, pois um auto exame mais aprofundado me revelaria que, no fundo, estou traindo minhas concepções mais profundas e fundamentais.

Um das ocorrências mais significativas deste processo seria a de Sartre ao se referir em sua obra “O ser e o nada” (2001)1 ao inconsciente psicanalítico como exemplo de conduta de má fé. Creditar a uma instância interna (porém separada) de minha consciência, meu insconsciente, influências sobre meus atos e justificações para os mesmos através da utilização de complexos abstraídos da mitologia grega clássica (Édipo de Sófocles) seria, para Sartre um claro e hipostasiado exemplo de má-fé.

O movimento natural de minha consciência seria na direção da busca de fechamento de uma totalidade (o ser), no entanto minha condição de para-si não o permite, portanto acabo me consistindo fundamentalmente como falta, como incompletude e conseqüentemente, ser em angústia.

As implicações do conceito de má-fe se estendem muito além do que aqui abordamos. Reiteramos que não há aqui intenção de esgotar nem seus significados nem suas possíveis implicações. Questões como a relação entre estas escolhas autênticas que deveríamos fazer e as restrições que sofremos em relação as nossas condições concretas enquanto seres que vivem em sociedade, são, em alguns casos, abordadas por Sartre de modo muito ambíguo.

Ambigüidade esta também apontada diversas vezes por seus críticos, como observamos nestas palavras de Mészáros:

Manter a autenticidade angustiante do discurso existencialista diametralmente oposta ao determinismo e sua “ma-fé”, enquanto reconhece todo o peso da contingência e da facticidade, significa um ato de equilíbrio imensamente difícil sobre um fio de arame, sob o perigo constante de se precipitar e romper em dois, metade do lado do determinismo mecanicista, a outra do lado da “pura indeterminação” (MÉSZÁROS. 1991. pp.187/188)

Ainda assim é impossível negar a importância da obra sartreana - importância esta muitas vezes lembrada pelo próprio Mészáros - e o que ela acrescenta em relação as reais possibilidades e responsabilidades referentes a nossas escolhas enquanto seres que construímos a todo tempo a nossa
realidade. A má-fé surge então, mesmo com seus possíveis problemas de aplicabilidade, como possibilidade de baliza interna para nossa consciência, que levaria em consideração as escolhas advindas de nossa condição de intrinsecamente livres, a realizar esta liberdade de modo mais autentico e
consciente, ainda que em meio a angústia, honestamente inevitável. 

* João Carlos Ruzza é Bacharel em Filosofia e, mestrando em Comunicação    


Referencias Bibliográficas:
-BURDZINSKI, Júlio César. Má-Fé e Autenticidade. Ijuí: UNIJUÍ, 1999.
-LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Ética e Literatura em Sartre: ensaios introdutórios.
São Paulo: Unesp, 2004.
-SARTRE, Jean-Paul. L’éxistentialisme est un Humanisme. Paris:Les Éditions
Nagel, 1970 – Trad. Rita Correia Guedes.
-SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes,
2001.
- MÉSZÁROS, Istvam. A Obra de Sartre: busca da liberdade. São Paulo: Ensaio,1991

3 comentários:

Nelson disse...

Interessante seu texto. O existencialismo de Sartre remete estranhamente à física quântica, pela qual sabemos que é impossível determinar com exatidão a posição de uma partícula e também apresenta a possibilidade de um mesmo corpo ocupar duas posições diferentes ao mesmo tempo. Fazendo uma analogia, podemos dizer que a existência humana são as "partículas" que não podemos detectar com exatidão, mas que sabemos da existência pelas leis físicas que não permitem "compreender" o Universo, dentro dos limites da mente humana. A "indeterminação" dessas partículas destituídas de essência é o que podemos chamar de "partículas condenadas à liberdade", para usar a expressão sartreana.

jc disse...

É verdade Nelson,acho que a sua analogia cabe sim. Pelo menos do ponto de vista da consciencia mais básica. O eletrón que, grosso modo, parece depender diretamente de sua observação para indicar seu "comportamento". Talvez o mesmo já não sirva para os aspectos mais "externos" da consciência. A nossa atuação na sociedade, por exemplo. Neste sentido, Sartre já indicava certas "determinações" históricas que incidem, inevitavelmente, sobre nossas escolhas.Nascer, por exemplo, sob um regime nazista implica, necessariamente escolhas muitas vezes maiores do que podemos dominar. Por isto que a liberdade exige engajamento. Abraço e valeu o comentário

Hailton Santos disse...

Excelente texto João! Se entendi bem, agir de má-fé, no conceito sartreano, implica entendimento prévio das múltiplas possibilidades, e como tal, não tem caráter de engano ou de enganar. Neste caso, a má-fé (como ação) recai sobre o próprio sujeito que age. Já no conceito vulgar, a má-fé é um ato que propõe certa vantagem em detrimento do outro.

Hailton