Clique aqui para ouvir
Algum tempo antes, eu lera um artigo de Gustavo Gitti3 em que ele colocava em questão exatamente essa discrepância entre a abundância com que a vida nos acena e a pouca vida que vivemos de fato. O foco central do texto eram os relacionamentos e Gitti usava um tom encorajador, estimulando o leitor a ser mais proativo na tentativa de realizar os próprios desejos. Defendia que todos queremos as mesmas coisas – atenção, carinho, amor - e que, portanto, devíamos ser mais corajosos na exposição de nossos sentimentos, e, enfim, mais transparentes e afetuosos.
Essa questão era recorrente nas minhas reflexões e imediatamente me identifiquei com as ideias do autor. Naquele momento, eu vinha protelando uma necessária conversa com um amigo, por temer sua reação à minha autoexposição. O texto de Gitti foi como um pontapé no traseiro, e me fez superar meus receios e ser clara. O que resultou numa enorme frustração, porque meu amigo não estava habituado a lidar com a clareza e menos ainda com a liberdade. Assustou-se, e passamos por um período conturbado que, felizmente, foi superado.
As pessoas em geral estão tão acostumadas a dissimular e restringir quando há afetividade em jogo, que o blefe e a imposição de regras rígidas muitas vezes são mais bem-vindos do que uma aposta sincera num exercício de liberdade. Afinal, como viver um relacionamento sem regrá-lo? Para a grande maioria, isso é verdadeiramente angustiante. E é assim que essa questão vira um bicho de sete cabeças, que a noção de uma vida plena acaba parecendo piada e que nós vivemos apenas um fiapo do que poderíamos viver, numa constante manutenção dessa defasagem entre vida possível e vida vivida.
Quando Thomaz Brum fala sobre as infinitas possibilidades com que a vida nos acena também está falando em liberdade e em coragem. Porque, se há tanta coisa para se viver, é preciso que tenhamos liberdade para fazer nossas escolhas e coragem pra vivê-las. Mas, me parece que quanto mais livres nos sentimos, mais numerosas e sedutoras são as possibilidades, mais nosso desejo se dispersa, confuso, provocando angústia e enfraquecendo nossa coragem, e mais nos frustramos por termos que abrir mão de muitas delas para viver apenas muito poucas.
Há alguns dias, lendo um artigo de Luiz Felipe Pondé4, me deparo com uma citação que ele faz de Kierkegaard5. Diz Pondé que o filósofo dinamarquês afirma que “nós somos feitos de angústia” devido ao nada que nos constitui e à liberdade infinita que nos assusta.
A associação de Kierkegaard entre liberdade e angústia me reportou de imediato à fala de Thomaz Brum, ao texto de Gitti e às minhas experiências pessoais.
Recordei-me dos vários momentos da minha vida em que a angústia da liberdade foi neutralizada por uma restrição compulsória dessa liberdade. A maternidade e a amamentação, sem dúvida alguma, me presentearam com algo que posso dizer muito próximo do que imagino ser a “paz”. A convicção de que um serzinho indefeso precisava de mim para viver me agraciava com um foco raro em mim quando em situação de maior liberdade. É possível argumentar contra isso dizendo que o nascimento de filhos é um acontecimento feliz, e que talvez daí viesse a ausência de angústia. Mas também me senti menos angustiada nos momentos em que tive que abrir mão da minha vida por conta de acontecimentos tristes, como doenças na família. O desagrado pela gravidade da situação acabava sendo superado pelo sentido que ela trazia para a minha vida. Embora muitas vezes minha própria vida não fizesse muito sentido para mim, contraditoriamente, quando o bem-estar de alguém dependia de mim, esse sentido surgia. E, nesses momentos, pouco me importava que a vida do outro também não fizesse muito sentido. Minimizar o sofrimento alheio e dar um pouco de conforto a alguém carente fazia todo sentido. E isso, ao menos momentaneamente, me colocava dentro de uma redoma opaca, que me distanciava tanto dos sedutores chamados do mundo lá fora, que eles deixavam de ter importância, e perdiam o poder de me angustiar.
Infelizmente, essa prática do amor nem sempre tem como objeto um ser humano ou algo positivo. Há quem ame a tristeza, a dor, o ressentimento, o remorso ou a doença e nisso também encontre um escape para a angústia da liberdade. Em Breviário de Decomposição Cioran diz:
Quem sofre de um mal caracterizado não tem o direito de queixar-se: tem uma ocupação. Os grandes enfermos não se enfastiam jamais: a doença os preenche, como o remorso alimenta os grandes culpados. Pois todo sofrimento intenso sustenta um simulacro de plenitude e propõe à consciência uma realidade terrível, que esta não saberia eludir; [...] 6
Uma cuidadosa passada de olhos ao nosso redor nos leva facilmente a concordar com Cioran. Muitas vezes a doença se torna uma espécie de bicho de estimação, e o enfermo encontra nela uma ocupação, um motivo para não se importar seriamente com mais nada, um refúgio. Acaba se criando uma relação de amor entre doente e doença. E esse amor parece justificar tudo, simulando um sentido para a vida.
Se não é fácil encontrar um sentido maior e único para justificar nossa existência, a cada nova fase da vida inventamos novos sentidos. Solteiros inventam a paixão. Casais cuja paixão já arrefeceu inventam filhos para ter novamente a quem amar. Pais que perdem filhos em acidentes se engajam em campanhas de trânsito, para ter uma causa para amar. Workaholics mergulham no trabalho. E assim seguimos, nessa constante busca de algo ou alguém que preencha esse vazio de sentido e que faça nossa existência ter algum valor.
Esse processo é doloroso, mas ficar lamentando a inexistência de um deus paternalista que nos dê isso de mão beijada pode ser uma grande perda de tempo. Se não somos como as plantas, que simplesmente “vivem”, e se podemos pensar, por que é que achamos que esse sentido já deveria estar dado ao nascermos?
Pondé discorre sobre a falta de sentido da vida, mas desemboca no amor: “Somos um nada que ama”. Sinceramente, não creio que sejamos um “nada”. Somos, sim, insignificantes perante a imensidão do universo. Mas acredito que isso se torne muito importante apenas para os antropocêntricos, que, ressentidos por não serem o motivo de todas as coisas, se travestem de humildes, levando essa insignificância ao extremo. Somos exatamente como tudo o que existe: um pedacinho, um quase invisível pedacinho. Mas um pedacinho que interage com todos os outros pedacinhos. E que ama. E que encontra na prática do amor um alívio para a angústia que a liberdade traz.
Surpreende-me a paradoxal constatação de que só encontramos um pouco de serenidade quando restringimos voluntariamente nossa liberdade. É num exercício de liberdade que optamos pela não liberdade para, em alguns momentos, termos um pouco de paz, amando. Seja lá quem ou o que for.
*Ana Lúcia Sorrentino é Escritora e estudante em Filosofia pela Universidade São Judas Tadeu.
Do blog: http://reencontrandosuaalma.blogspot.com.br
1- Doutor em Filosofia, professor da PUC-RJ e tradutor das principais obras de Cioran no Brasil.
2 - Cioran, Émile Michel (8 de abril de 1911, Răşinari, Sibiu, Austria-Hungary (hoje Romênia) – Paris, 20 de junho de 1995), filósofo romeno-francês.
3 - Filósofo e Pedagogo pela USP, autor do blog Não2Não1.
4 - Pondé, Luiz Felipe – “Meu irmão Kierkegaard” – Folha de São Paulo - 13/06/11.
5 - Kierkegaard, Søren Aabye (Copenhague, 5 de Maio de 1813 - Copenhague, 11 de Novembro de 1855) foi um filósofo e teólogo dinamarquês.
6 - Cioran, Émile Michel. Breviário de Decomposição.Tradução de José Thomaz Brum. Ed. Rocco. Rio de Janeiro, 1995. p.22.
Certa vez, assistindo a uma palestra de José Thomaz Brum1, impressionou-me a resposta do palestrante a um rapaz que lhe perguntou sobre o sentido da morte na obra de E. M. Cioran2. Disse Thomaz Brum que lhe parecia que quando Cioran falava sobre a morte não estava falando da morte tal qual a conhecemos, mas de tudo aquilo que não vivemos. Que logo que despontamos para a adolescência começamos a perceber o quanto a vida é rica em possibilidades, mas mesquinha em realizações. E que era a essa defasagem que Cioran provavelmente se referia.
Algum tempo antes, eu lera um artigo de Gustavo Gitti3 em que ele colocava em questão exatamente essa discrepância entre a abundância com que a vida nos acena e a pouca vida que vivemos de fato. O foco central do texto eram os relacionamentos e Gitti usava um tom encorajador, estimulando o leitor a ser mais proativo na tentativa de realizar os próprios desejos. Defendia que todos queremos as mesmas coisas – atenção, carinho, amor - e que, portanto, devíamos ser mais corajosos na exposição de nossos sentimentos, e, enfim, mais transparentes e afetuosos.
Essa questão era recorrente nas minhas reflexões e imediatamente me identifiquei com as ideias do autor. Naquele momento, eu vinha protelando uma necessária conversa com um amigo, por temer sua reação à minha autoexposição. O texto de Gitti foi como um pontapé no traseiro, e me fez superar meus receios e ser clara. O que resultou numa enorme frustração, porque meu amigo não estava habituado a lidar com a clareza e menos ainda com a liberdade. Assustou-se, e passamos por um período conturbado que, felizmente, foi superado.
As pessoas em geral estão tão acostumadas a dissimular e restringir quando há afetividade em jogo, que o blefe e a imposição de regras rígidas muitas vezes são mais bem-vindos do que uma aposta sincera num exercício de liberdade. Afinal, como viver um relacionamento sem regrá-lo? Para a grande maioria, isso é verdadeiramente angustiante. E é assim que essa questão vira um bicho de sete cabeças, que a noção de uma vida plena acaba parecendo piada e que nós vivemos apenas um fiapo do que poderíamos viver, numa constante manutenção dessa defasagem entre vida possível e vida vivida.
Quando Thomaz Brum fala sobre as infinitas possibilidades com que a vida nos acena também está falando em liberdade e em coragem. Porque, se há tanta coisa para se viver, é preciso que tenhamos liberdade para fazer nossas escolhas e coragem pra vivê-las. Mas, me parece que quanto mais livres nos sentimos, mais numerosas e sedutoras são as possibilidades, mais nosso desejo se dispersa, confuso, provocando angústia e enfraquecendo nossa coragem, e mais nos frustramos por termos que abrir mão de muitas delas para viver apenas muito poucas.
Há alguns dias, lendo um artigo de Luiz Felipe Pondé4, me deparo com uma citação que ele faz de Kierkegaard5. Diz Pondé que o filósofo dinamarquês afirma que “nós somos feitos de angústia” devido ao nada que nos constitui e à liberdade infinita que nos assusta.
A associação de Kierkegaard entre liberdade e angústia me reportou de imediato à fala de Thomaz Brum, ao texto de Gitti e às minhas experiências pessoais.
Recordei-me dos vários momentos da minha vida em que a angústia da liberdade foi neutralizada por uma restrição compulsória dessa liberdade. A maternidade e a amamentação, sem dúvida alguma, me presentearam com algo que posso dizer muito próximo do que imagino ser a “paz”. A convicção de que um serzinho indefeso precisava de mim para viver me agraciava com um foco raro em mim quando em situação de maior liberdade. É possível argumentar contra isso dizendo que o nascimento de filhos é um acontecimento feliz, e que talvez daí viesse a ausência de angústia. Mas também me senti menos angustiada nos momentos em que tive que abrir mão da minha vida por conta de acontecimentos tristes, como doenças na família. O desagrado pela gravidade da situação acabava sendo superado pelo sentido que ela trazia para a minha vida. Embora muitas vezes minha própria vida não fizesse muito sentido para mim, contraditoriamente, quando o bem-estar de alguém dependia de mim, esse sentido surgia. E, nesses momentos, pouco me importava que a vida do outro também não fizesse muito sentido. Minimizar o sofrimento alheio e dar um pouco de conforto a alguém carente fazia todo sentido. E isso, ao menos momentaneamente, me colocava dentro de uma redoma opaca, que me distanciava tanto dos sedutores chamados do mundo lá fora, que eles deixavam de ter importância, e perdiam o poder de me angustiar.
Infelizmente, essa prática do amor nem sempre tem como objeto um ser humano ou algo positivo. Há quem ame a tristeza, a dor, o ressentimento, o remorso ou a doença e nisso também encontre um escape para a angústia da liberdade. Em Breviário de Decomposição Cioran diz:
Quem sofre de um mal caracterizado não tem o direito de queixar-se: tem uma ocupação. Os grandes enfermos não se enfastiam jamais: a doença os preenche, como o remorso alimenta os grandes culpados. Pois todo sofrimento intenso sustenta um simulacro de plenitude e propõe à consciência uma realidade terrível, que esta não saberia eludir; [...] 6
Uma cuidadosa passada de olhos ao nosso redor nos leva facilmente a concordar com Cioran. Muitas vezes a doença se torna uma espécie de bicho de estimação, e o enfermo encontra nela uma ocupação, um motivo para não se importar seriamente com mais nada, um refúgio. Acaba se criando uma relação de amor entre doente e doença. E esse amor parece justificar tudo, simulando um sentido para a vida.
Se não é fácil encontrar um sentido maior e único para justificar nossa existência, a cada nova fase da vida inventamos novos sentidos. Solteiros inventam a paixão. Casais cuja paixão já arrefeceu inventam filhos para ter novamente a quem amar. Pais que perdem filhos em acidentes se engajam em campanhas de trânsito, para ter uma causa para amar. Workaholics mergulham no trabalho. E assim seguimos, nessa constante busca de algo ou alguém que preencha esse vazio de sentido e que faça nossa existência ter algum valor.
Esse processo é doloroso, mas ficar lamentando a inexistência de um deus paternalista que nos dê isso de mão beijada pode ser uma grande perda de tempo. Se não somos como as plantas, que simplesmente “vivem”, e se podemos pensar, por que é que achamos que esse sentido já deveria estar dado ao nascermos?
Pondé discorre sobre a falta de sentido da vida, mas desemboca no amor: “Somos um nada que ama”. Sinceramente, não creio que sejamos um “nada”. Somos, sim, insignificantes perante a imensidão do universo. Mas acredito que isso se torne muito importante apenas para os antropocêntricos, que, ressentidos por não serem o motivo de todas as coisas, se travestem de humildes, levando essa insignificância ao extremo. Somos exatamente como tudo o que existe: um pedacinho, um quase invisível pedacinho. Mas um pedacinho que interage com todos os outros pedacinhos. E que ama. E que encontra na prática do amor um alívio para a angústia que a liberdade traz.
Surpreende-me a paradoxal constatação de que só encontramos um pouco de serenidade quando restringimos voluntariamente nossa liberdade. É num exercício de liberdade que optamos pela não liberdade para, em alguns momentos, termos um pouco de paz, amando. Seja lá quem ou o que for.
*Ana Lúcia Sorrentino é Escritora e estudante em Filosofia pela Universidade São Judas Tadeu.
Do blog: http://reencontrandosuaalma.blogspot.com.br
1- Doutor em Filosofia, professor da PUC-RJ e tradutor das principais obras de Cioran no Brasil.
2 - Cioran, Émile Michel (8 de abril de 1911, Răşinari, Sibiu, Austria-Hungary (hoje Romênia) – Paris, 20 de junho de 1995), filósofo romeno-francês.
3 - Filósofo e Pedagogo pela USP, autor do blog Não2Não1.
4 - Pondé, Luiz Felipe – “Meu irmão Kierkegaard” – Folha de São Paulo - 13/06/11.
5 - Kierkegaard, Søren Aabye (Copenhague, 5 de Maio de 1813 - Copenhague, 11 de Novembro de 1855) foi um filósofo e teólogo dinamarquês.
6 - Cioran, Émile Michel. Breviário de Decomposição.Tradução de José Thomaz Brum. Ed. Rocco. Rio de Janeiro, 1995. p.22.
Um comentário:
Muito bom seu texto. Para Heidegger, a angústia é uma das características do ser humano, quando ele se depara com a dicotomia entre o ser e o nada, que não é oposto de ser, o "não ser", mas o "nada que nadifica", (Nichts das nichtet).
Postar um comentário